Os desdobramentos da Conferência Mundial contra o Racismo realizada em Durban, África do Sul, foram esquecidos pela mídia com o atentado de Nova York. No momento em que organizações como a American Civil Liberties Union (Aclu) chamam a atenção para o risco de a luta contra o terrorismo provocara maior onda de desrespeito às liberdades civis jamais vista, com o recrudescimento de determinados tipos de racismo e discriminação contra grupos étnicos e religiosos, está na hora de retomarmos a reflexão sobre esses temas.
Nas vésperas da Conferência Contra o Racismo, houve razoável espaço na mídia para esta discussão. No Brasil, jornais, rádios e televisões divulgaram estatísticas, promoveram debates e contribuíram para denunciar o que se procurou historicamente negar: somos ,sim, um país racista. O Centro de Estudos de Segurança e Cidadania da Universidade Candido Mendes promoveu seminário intitulado Mídia e Racismo, quando jornalistas experientes como Miriam Leitão reafirmaram que a mídia também é racista, e que ainda há muito a ser feito para modificar esse quadro.
Nos dias que antecederam a conferência, um dos trabalhos mais citados foi o de Ricardo Henriques, do Ipea sobre desigualdade e renda no Brasil. Vale conferir alguns números para retomarmos a questão, lembrando sempre que brancos constituem 54% da população brasileira e negros 45%.
Entre os 10% mais pobres, 70% são negros;
Considerando a população com mais de 15 anos, as taxas de analfabetismo são de 8,3% para brancos e 19,8% para negros;
A escolaridade média de brasileiros com mais de 25 anos é de 8.4 anos para brancos e 6.1 anos para negros, diferenças que se mantêm há 50 anos;
Negros e brancos com escolaridade idêntica ganham salários distintos, os primeiros recebendo 20% menos do que os segundos;
62% das crianças que trabalham são negras;
A mortalidade infantil é de 29 por mil nascidos vivos para brancos, e de 53 mil para negros.
Reflexos do racismo são encontrados em várias áreas e, na Conferência de Durban, tive a oportunidade de apresentar trabalho sobre o impacto do racismo no âmbito do sistema de justiça criminal, valendo-me do limitado elenco de investigações sobre o tema. Sem dúvida, o viés racial está presente nas várias instâncias do sistema de justiça criminal brasileiro e, por isso mesmo, Hédio Silva, professor universitário e militante do Movimento Negro, afirma, com propriedade, que a política de inclusão do negro na sociedade brasileira tem sido a política penal.
São reveladores, por exemplo, os resultados de pesquisa realizada em 1997 pelo Datafolha, que investigou a percepção da população paulista em relação à polícia e aos criminosos. Perguntados sobre que grupo lhes causava mais medo, se policiais ou criminosos, as respostas de brancos e negros foram muito distintas. Entre os brancos, 71% têm mais medo dos criminosos; entre os negros, 55% declararam temer mais a polícia.
Trabalho desenvolvido por Ignacio Cano, no Rio de Janeiro e São Paulo, demonstra que tais números são plenamente justificáveis porque negros, por exemplo, são mortos pela polícia em proporção muito superior à sua participação na população. Exatamente, três vezes mais. E, o que é pior, o índice de letalidade (relação entre pessoas mortas e pessoas feridas pela polícia) é de 37% a 100% mais alto para negros do que para brancos.
Em São Paulo, Sérgio Adorno, pesquisador do Núcleo de Violência da USP, demonstrou que o viés racial está presente nas decisões da Justiça paulista. Analisando casos de roubo rigorosamente idênticos, Adorno constatou que negros eram condenados em 68,8% dos casos e brancos em apenas 59,4% dos casos.
Túlio Kahn, pesquisador do Ilanud, lembra que a taxa de encarceramento por cem mil habitantes, em São Paulo, é de 76,8 para brancos e 280,5 para negros. No Rio de Janeiro, também, os negros estão sobre-representados na população prisional, pois constituem 40% da população do estado e 60% da população encarcerada.
É necessário, ainda, muito trabalho rigoroso de pesquisa para avaliar a dimensão precisa do impacto do racismo no sistema de justiça criminal brasileiro, e aprofundar a análise sobre formas de atuação do viés racial na sociedade como um todo. Está na hora de a mídia reassumir seu papel nessa discussão, divulgando o que vem sendo feito por vários grupos ecoando a Conferência de Durban.