Dados são da pesquisa Tiros no Futuro, divulgada hoje
A pesquisa “Tiros no Futuro: impactos da guerra às drogas na rede municipal de educação do Rio de Janeiro” mostrou que 74% das escolas da cidade vivenciaram pelo menos um tiroteio em seu entorno em 2019. Dados indicam que, entre elas, cinco unidades concentram 20 ou mais operações policiais no período. O perfil dos alunos, em grande parte (77%), é de negros nas escolas mais expostas à violência.
A pesquisa inédita foi lançada hoje (7) pelo Centro de Estudos de Segurança e Cidadania (CESeC), fundado em 2000 na Universidade Cândido Mendes. O centro desenvolve estudos e outros projetos nas áreas de segurança pública, justiça e política de drogas. Seu compromisso é a promoção dos direitos humanos e a luta contra o racismo no sistema de Justiça Criminal.
O estudo avaliou a relação entre confrontos da polícia com grupos que controlam venda de drogas em áreas pobres da cidade, principalmente nas comunidades, e o impacto dessa política na renda futura do estudante. Também analisou os efeitos da guerra às drogas nos resultados escolares dos alunos do 5º ano do ensino fundamental da rede pública da capital.
Perdas
Os pesquisadores concluíram que estudantes de unidades instaladas em áreas violentas, que registraram seis ou mais operações policiais, têm redução média de 7,2 pontos no desempenho em língua portuguesa e 9,2 em matemática. “Considerando o ganho médio anual de proficiência, a exposição à violência resulta em perda de 64% do aprendizado esperado em língua portuguesa e em matemática”, informa o estudo.
Na comparação das médias de reprovação e de abandono das unidades de ensino, a conclusão é que a exposição frequente a tiroteios, com a presença de agentes de segurança, pode gerar aumento de 2,09% na taxa de reprovação e de 46,4% na probabilidade de pelo menos um aluno abandonar a escola.
Efeito financeiro
O déficit de aprendizagem no 5º ano provocou perda financeira na vida produtiva dos estudantes, segundo a pesquisa, de até R$ 24.698,00, valor correspondente a 48 cestas básicas ou 377 botijões de gás ou 13 anos de passagens de ônibus, duas vezes por dia.
“Esse jovem, ao concorrer a uma vaga no Sistema de Seleção Unificada (Sisu), já está em desvantagem em relação a outros alunos também do ensino público, pelo fato de ter a aprendizagem comprometida pela guerra às drogas desde a infância. Essa diferença se perpetua na vida produtiva do cidadão, reduzindo a oportunidade de geração de renda. Estamos falando da manutenção da desigualdade e estagnação de mobilidade social como reflexos diretos da ação do Estado”, comentou a socióloga e coordenadora do CESeC, Julita Lemgruber.
Projeto
Tiros no Futuro é a segunda etapa do projeto Drogas: quanto custa proibir, elaborado com a intenção de acrescentar ao debate público reflexão sobre os impactos econômicos e orçamentários da legislação proibicionista nas áreas específicas de segurança e justiça, de educação, saúde e do território. A primeira fase foi marcada pelo lançamento, em março de 2021, do relatório Um Tiro no Pé: impactos da proibição das drogas no orçamento do sistema de Justiça Criminal do Rio de Janeiro e São Paulo. O trabalho teve custo de R$ 5,2 bilhões para manter a política proibicionista em um ano nos dois estados.
Convênio
A pesquisa foi realizada a partir de convênio com a Secretaria Municipal de Educação (SME) do Rio de Janeiro. Foram avaliados dados das 1.577 unidades de ensino da rede pública carioca, alcançando 641.534 alunos matriculados em 2019. O ano é referência para os levantamentos apontados por anteceder a pandemia de covid-19, que alterou a dinâmica escolar. O fato de focar os estudos nos dados da capital fluminense é decorrente do cenário único no país pela frequência de operações policiais, tiroteios e disparos de armas de fogo no cotidiano de certos territórios, até nos próximos às escolas.
Rotina
A análise foi baseada em informações obtidas com a SME sobre operações policiais que interferiram na rotina das escolas, como a suspensão das aulas ou o fechamento da unidade. Também foram avaliados dados da plataforma Fogo Cruzado, que registra ocorrências de tiroteios na região metropolitana do Rio. Com a combinação, segundo os pesquisadores, foi possível georreferenciar e comparar 32 escolas com pelo menos seis operações policiais em 2019 e 37 que não tiveram essas ocorrências naquele ano.
“Foi considerada a similaridade entre os dois grupos em: indicador de complexidade da gestão; perfil socioeconômico das famílias; proporção de pais com alta escolaridade; proporção de alunos não brancos e proporção de educandos do sexo masculino. A única diferença entre os grupos foi a exposição a eventos violentos, como as operações policiais”, revelou o CESeC.
Para os pesquisadores, a pesquisa Tiros no Futuro demonstra que o efeito da guerra às drogas na educação é apenas uma das faces dessa política, que expõe determinado setor da população, de maioria negra e pobre, a um cenário bélico cujos “únicos resultados têm sido desperdício de dinheiro público, que poderia ser investido em políticas de promoção à vida”.
Segundo Julita Lemgruber, a consequência da guerra às drogas na vida de uma pessoa é incalculável. Ela afirmou que o propósito do projeto é mostrar que, além do custo orçamentário para o Estado, há o efeito na vida do cidadão. “O quanto sua capacidade futura de geração de renda e sua mobilidade social podem ser comprometidas como consequência dessa opção política racista e classista operada pelo Estado. Esse prejuízo afeta o futuro do indivíduo e a sociedade como um todo. E todos perdemos nessa guerra”, afirmou.
Pandemia
A diretora do Centro de Excelência e Inovação em Políticas Educacionais, da Escola Brasileira de Administração Pública e de Empresas da Fundação Getulio Vargas, professora Claudia Costin, lembrou que além dos tiroteios, esses alunos sofreram impactos no aprendizado causados pela pandemia de covid-19. “É terrível não só para a aprendizagem mas para o bem-estar pessoal desses alunos e a possibilidade de um desenvolvimento harmônico e equilibrado de crianças e jovens, por isso a escola tem papel tão importante, principalmente nas crianças expostas a violência grande, inclusive com o fechamento de escolas”, disse.
A professora destacou que essas crianças que moram e estudam em áreas de conflito não têm as mesmas condições para acompanhar as aulas no sistema remoto que um aluno da classe média. “Para quem mora em comunidade não é só a questão da violência, a casa é inapropriada para o processo de aprender a distância. Essas crianças acabam ficando nas ruas, expostas ao vírus e ainda à violência”. Ela lembrou ainda que durante a pandemia aumentou também o recrutamento de crianças e jovens por traficantes e milicianos.
Claudia Costin, que foi ministra da Administração Federal e Reforma do Estado entre 1985 e 1989 e secretária municipal de Educação do Rio no período de 2009 a 2014, defendeu a adoção de políticas públicas nas regiões conflagradas. “É fundamental que, neste momento, as políticas públicas estaduais e municipais olhem com ações afirmativas para essas áreas. Toda a melhoria de escolas em tempo integral deveria olhar primeiro para essas comunidades”.
Polícia Militar
Em nota à Agência Brasil, a Secretaria de Estado de Polícia Militar disse que a corporação tem missão central e permanente de defesa da sociedade do Rio. Garantiu que as ações policiais seguem protocolos rígidos de atuação e preceitos técnicos de treinamento e orientação.
“Um dos objetivos exponenciais da Polícia Militar é a preservação de vidas, sejam elas as da população em geral ou as dos policiais envolvidos nas ações. Ressaltamos ainda que a opção pelo confronto é sempre uma decisão dos criminosos que, munidos de armamento de guerra e conduta extremamente inconsequente, atentam contra a vida dos policiais e não levam em conta o extremo perigo que proporcionam às populações locais”, afirmou.
Polícia Civil
Também em resposta à Agência Brasil, a Secretaria de Estado de Polícia Civil do Rio informou que todas as operações da atual gestão são baseadas nos pilares de inteligência, investigação e ação. “Têm alcançado redução constante nos índices de violência registrados pelo Instituto de Segurança Pública, com resultados, em alguns setores, que são os melhores desde o início da série histórica”.
SME
A Secretaria Municipal de Educação informou que trata como prioridade a segurança de alunos e dos profissionais e que, em agosto do ano passado, foi renovado o acordo com o Comitê Internacional da Cruz Vermelha para incorporar o programa Acesso Mais Seguro às escolas. “O programa tem como objetivos mitigar riscos, orientar professores e alunos; planejar ações em conjunto nas unidades escolares e nos territórios; prevenir a evasão escolar, entre outras ações”. Acrescentou que “o reforço escolar existe para todas as escolas da rede, com maior ênfase para as que ficam em regiões conflagradas”.
Edição: Graça Adjuto