Levantamento feito pelo CESeC em parceira coma Secretaria Municipal de Educação revela impacto no desempenho dos alunos em Português e Matemática
RIO — Há cinco anos a família de Maria Eduarda Alves da Conceição chora a morte da menina de 13 anos, após ser atingida por quatro tiros, em 30 de março de 2017, dentro da Escola municipal Jornalista Daniel Piza, durante uma operação da Polícia Militar em Acari, na Zona Norte do Rio. A comoção social em torno da morte da adolescente, porém, pouco mudou na rotina de violência no entorno das unidades escolares. Atualmente, sua sobrinha, de 15 anos, estuda na mesma escola. E o dia a dia de violência, operações policiais e tiroteios na área continua, como conta o pai da garota, Uidson Alves Ferreira, de 37 anos, irmão mais velho de Maria Eduarda.
— Minha mãe está indo ao psiquiatra. Nunca mais conseguiu trabalhar. E as operações não pararam, mesmo com a liminar do Supremo. Vira e mexe, no horário de entrada das crianças, às 7h, tem tiroteio — lamenta ele.
Na manhã desta seginda-feira, o prefeito do Rio, Eduardo Paes, comentou os resultados da pesquisa:
— A gente tem um problema muito grave de segurança na cidade e temos esse problema de violência. Infelizmente, isso chega perto da Clínica da Família, das escolas e das nossas casas.
As operações policiais e os tiroteios perto de estabelecimentos de ensino, porém, podem causar danos mesmo em quem não é atingido por uma bala. Uma pesquisa do Centro de Estudos de Segurança e Cidadania (CESeC), lançada hoje — data de início do ano letivo — mostra como a violência no entorno das escolas prejudica o desempenho escolar. O estudo “Tiros no Futuro: Impactos da guerra às drogas na rede municipal de Educação do Rio de Janeiro” revela que 74% das escolas cariocas tiveram ao menos um tiroteio no seu entorno em 2019.
O levantamento avaliou, através de um convênio firmado com a Secretaria municipal de Educação do Rio (SME), os dados de 1.577 unidades de ensino da rede, com um total de 641.534 alunos matriculados em 2019, ano de referência por anteceder a pandemia da Covid-19. As escolas mais expostas à violência registraram, em média, no seu entorno, dez operações policiais em 2019. As unidades não tiveram os nomes revelados.
“Presença de blindados nas proximidades da unidade, tiroteio intenso, e ouvimos, também, muitas bombas. Sem condições para funcionamento”. Esse relato do diretor de uma unidade à SME, em março de 2019, foi reproduzido no estudo. Apenas naquele ano, foram 1.154 escolas da rede municipal de ensino fundamental afetadas por pelo menos um tiroteio com a presença de agentes de segurança, segundo dados da plataforma Fogo Cruzado, utilizados pelo estudo, que também avaliou dados da Prova Brasil.
Na última segunda-feira, uma escola no Complexo da Maré voltou a ser assunto de polícia. Agentes da Polícia Rodoviária Federal (PRF) e do Bope encontraram um depósito de veículos roubados dentro do Ciep 326 Professor César Pernetta, no Parque União. A unidade é a mesma que, em fevereiro do ano passado, recebeu um show do cantor Belo para milhares de pessoas, sem autorização da Secretaria estadual de Educação.
A violência no entorno da escola deixa marcas no desempenho de seus alunos: o Ciep 326 ficou abaixo da meta do Ideb em 2013, com nota 3,2; e nas três últimas avaliações (2015, 2017 e 2019) não teve média no Saeb, por não ter participado ou não ter tido alunos em quantidade suficiente fazendo a prova.
— Mesmo dentro da sala de aula, os alunos não estão livres dessa violência. Estudam sob esse barulho infernal de tiros, de helicópteros sobrevoando escolas. Em qualquer país do mundo, uma situação como essa derrubaria qualquer governo. Mas neste país a gente naturaliza a morte de pessoas pobres e negras. O mesmo Estado que usa seus recursos para prover colégios com professores, condições mínimas para as crianças estudarem, provoca um quadro dantesco de violência no entorno dessas escolas — avalia a socióloga Julita Lemgruber, coordenadora do CESeC.
O trabalho demonstra que há maior evasão e repetência nas escolas mais atingidas por tiroteios. Estudantes do 5º ano de instituições com entorno violento — que registraram seis ou mais ocorrências de operações policiais — têm uma redução média de 7,2 pontos no desempenho em Língua Portuguesa e 9,2 em Matemática. A exposição à violência resulta em uma perda de 64% do aprendizado esperado em Língua Portuguesa. Em Matemática, a perda é de todo o aprendizado que o aluno deveria adquirir nessa etapa de ensino.
— Quando a polícia faz uma operação, não sentimos que há um cuidado em relação à rotina da escola e da comunidade. Não conseguimos dar aula, porque a concentração do aluno vai embora, ele está preocupado com os pais que saíram para trabalhar ou com os irmãos que estudam em outras escolas — relata um professor de uma unidade municipal em Costa Barros, na Zona Norte.
Perda de renda
A pesquisa mostra como esse déficit de aprendizagem no 5º ano resulta em uma redução de renda no futuro. Segundo os dados, um trabalhador que tenha estudado, quando criança, numa escola da rede pública municipal do Rio sujeita à violência no entorno perde o valor de R$ 24.698, ao longo de sua vida produtiva (estimada em 49 anos) em decorrência da queda de 8,2 pontos no Sistema de Avaliação da Educação Básica (Saeb).
Uma mãe moradora do Morro da Serrinha, na Zona Norte, que prefere não ser identificada, conta como a violência já impacta na educação de seu filho, de apenas 3 anos, que estuda em uma creche municipal da favela:
— Ele já sabe quando é barulho de tiro ou quando são fogos. Sabe que deve se proteger, já ensinamos isso a ele. No começo, foi bem complicado, porque nos dias sem tiroteio ele também fica com medo de brincar no quintal e na rua. Conversamos com ele, e não podemos sair de perto. Muitas vezes as operações são no horário em que as crianças estão indo para a escola, o que dificulta muito a ida para a aula. Eu, particularmente, prefiro não deixá-lo ir. As professoras mandam as atividades pelo WhatsApp, e isso ajuda muito. Mas não é a mesma coisa que a criança no ambiente escolar.
Julita Lemgruber destaca que, embora o varejo de drogas aconteça na cidade toda, é a atividade na favela que é objeto da violência policial:
— Ali está a população para ser exterminada. Isso é resultado de um país racista. A gente precisa ter alterações profundas na política de drogas do Brasil, porque isso que se vende para a sociedade como guerra às drogas não é nada mais do que um álibi para usar a violência nesses espaços da pobreza.
Saúde mental
Para Claudia Costin, diretora do Centro de Política Educacional da Fundação Getúlio Vargas (FGV), é necessário um investimento maior nas áreas mais conflagradas, onde estão as crianças e adolescentes que mais necessitam da escola. Ela destaca ainda que é preciso um suporte de saúde mental para professores e alunos que vivem essa realidade:
— Sobretudo, é necessária uma atenção para o ensino fundamental 2, que é a idade onde há o aliciamento pelo crime aos jovens. É preciso ter uma ação afirmativa, ou seja, dar mais recursos, atrair os melhores professores e ter mais atividades como artes e esportes, para que as crianças tenham modelos a seguir fora da violência.
Sobre o Ciep 326 Cesar Pernetta, a Secretaria estadual de Educação informou que, de acordo com as diretrizes para a realização do Saeb, “a unidade não atendeu aos requisitos necessários para ter o desempenho calculado”. Disse ainda que a sindicância instaurada para apurar informações sobre o depósito de carros roubados é apenas para ouvir os relatos dos envolvidos na situação.
Segundo a Polícia Militar, “as operações realizadas pela corporação estão rigorosamente alinhadas ao que preconiza a ADPF 635 do Supremo Tribunal Federal” e as ações policiais “são baseadas em protocolos rígidos de atuação e preceitos técnicos de treinamento e orientação”.