Com a aprovação liminar da ADPF, o impacto no número de mortes pôde ser constatado: no período de junho a setembro de 2020, o estado atingiu 191 mortes; no mesmo intervalo, em 2019, haviam sido computadas 675 – uma redução de 71,8%
No mesmo dia 3 de fevereiro em que o Plenário do Supremo Tribunal Federal (STF) retomou o julgamento da Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) 635, a Polícia Militar do Rio de Janeiro realizava uma operação que resultou em seis mortos em Belford Roxo, na Baixada Fluminense. Episódios desse tipo se repetem no cotidiano da região, legitimados por ideias que entendem a aplicação da força letal como antídoto para redução de crimes.
Não é de hoje que os discursos que endossam o uso da violência armada e o confronto bélico como solução para a segurança pública do Rio de Janeiro são defendidos por uma ala da sociedade fluminense. Contudo, as eleições de 2018 trouxeram uma nova conjuntura desse tipo de pensamento devido ao fato de que argumentos como “bandido bom é bandido morto” saíram das mesas de botequim para assumir o status de discurso oficial da campanha vitoriosa no estado.
A chapa eleita e formada por Wilson Witzel e Cláudio Castro nunca escondeu o fetichismo bélico e o fez com demonstrações e declarações públicas (“tiros na cabecinha” e a fatídica comemoração após a morte de um sequestrador na ponte Rio-Niterói) que por um lado ressoavam a verborragia bolsonarista e de outro buscavam apoio político de uma ala mais conservadora do estado.
O resultado desse processo se apresentou nos números de mortes por intervenção de agentes do Estado no Rio de Janeiro. Se a intervenção federal já escancarava esse ideário de enfrentamento batendo o recorde de mortes pela polícia até então (1.534 mortes em 2018), o novo governo, em seu primeiro ano, bateu esse recorde com 1.814 mortes decorrentes de intervenção de agentes do Estado em 2019. Há de se ressaltar que essa bomba-relógio não foi armada pelo último governo eleito no Rio. O estado vem apresentando aumentos anuais sucessivos no número de mortes provocadas por agentes do Estado, saindo do patamar de 416 vítimas em 2013 e atingindo o recorde de 1.814 em 2019.
Diante de tal conjuntura, ações que visassem a reduzir o número de ações letais das polícias fluminenses foram apresentadas por órgãos da sociedade civil e instituições do Estado como forma de preservar vidas dos principais alvos das operações das forças policiais: a juventude negra moradora de favelas. Um desses dispositivos foi apresentado pelo Partido Socialista Brasileiro (PSB) ao STF, a ADPF 635.
Com a aprovação liminar da ADPF por parte do ministro Edson Fachin, o impacto no número de mortes pôde ser visto. Em junho de 2020, mês em que a liminar foi deferida, houve 34 mortes desse tipo no Rio de Janeiro contra 153 no mesmo mês em 2019. Somado o período de junho a setembro de 2020, o estado atingiu 191 mortes, enquanto que no mesmo intervalo em 2019 totalizou 675, uma redução de 71,8%.
Diante da conjuntura de criminalidade no Rio e evocando o discurso de que os grupos armados do estado se privilegiariam da ADPF para se articularem e tomarem territórios inimigos, as forças de segurança voltaram a agir como outrora, no último trimestre de 2020. Ainda assim, o estado reduziu as mortes por intervenção em 31,4%. Em Belford Roxo essa redução foi ainda maior: 40,3%. Essa redução tem refletido os impactos da ADPF.
Em 2021 as operações em favelas seguiram o ritmo do último trimestre de 2020. As justificativas para o descumprimento da ADPF repousaram em dois eixos: o operacional, baseado na justificativa de que o confronto armado seria iniciado pelos criminosos que reagiriam às ações legais das polícias; e o institucional, baseado na justificava de que as operações seriam registradas, informadas e planejadas dentro dos parâmetros legais, com a geração de inquéritos policiais acompanhados pelo Ministério Público do Rio de Janeiro (MPRJ).
O resultado do descumprimento da ADPF foi o aumento das mortes por intervenção em 2021 (8,8%), com os episódios das chacinas do Salgueiro e do Jacarezinho, a maior da história do estado, com 27 mortos numa ação policial. Esses dois eventos, junto com ações em Belford Roxo (onde 36% das mortes violentas são decorrentes de ação policial), exemplificam bem o tipo de política de segurança vigente no estado.
Diante desse cenário, o discurso da falta de solução ancora a tomada de medidas extremas no uso da violência, mas é possível verificar exemplos práticos de medidas tomadas para a redução da letalidade. Tais ações se pautam na: (1) promoção de cidadania e acesso a serviços básicos em territórios vulnerabilizados; (2) proteção social com a articulação de diferentes secretarias; (3) policiamento baseado em evidências, com modernização da força policial e foco na prevenção de crimes; (4) integração institucional entre os órgãos direta e indiretamente relacionados com a segurança pública e proteção social. O vizinho Espírito Santo, com uma redução consistente da letalidade violenta, demonstra sinais de que esse tipo de política pública pode ser efetiva ao se assumir uma postura política de preservação de vidas.
Outro vizinho, o estado de São Paulo, vem experimentando reduções importantes na letalidade policial, provando que quando a própria corporação está resolvida a enfrentar o problema, as mortes decorrentes de ação policial podem atingir patamares de forças policiais preocupadas coma vida.
Num período em que o governador atual do Rio legitima ações violentas, vislumbrar uma política pública que preserve vidas se mostra cada vez mais distante. Em um cenário como esse, a ADPF é uma conquista dos movimentos sociais e dos moradores de favelas em direção ao arrefecimento no número de mortos pela polícia. O desafio que entra em cena a partir de agora diz respeito às alternativas do próprio Poder Judiciário para o cumprimento efetivo de suas determinações. Com a palavra, o STF e o Ministério Público do Rio de Janeiro.