Na tarde do dia 29 de abril último, no teatro do SESC Tijuca, adolescentes infratores sob a responsabilidade do DEGASE (Departamento Geral de Ações Sócio-Educativas, órgão subordinado à Secretaria da Infância e da Juventude do Estado do Rio de Janeiro), encenaram passagens de suas vidas, a partir de situações e textos criados por eles mesmos, orientados por um grupo de profissionais de uma organização não-governamental. Seguiu-se um debate com especialistas (psicólogos, cientistas sociais etc.) ao longo do qual a interação com os jovens foi densa, rica e tocante.
Os jovens apresentaram a um público, ora perplexo, ora emocionado, mas sempre profundamente impactado, cenas de seu cotidiano: a violência a que estão submetidos dentro de casa; o jovem traficante, pego no flagrante, enviado para o DEGASE; a relação dos meninos infratores com a polícia e entre eles e o tráfico.
Nas discussões, ao ouvir uma das meninas contar que sua mãe apanhou de seu pai por anos a fio, um outro menino interferiu para concluir: “ora, com todo o respeito, se sua mãe apanhou por tantos anos, ela bem que devia merecer”. Ao que a menina retrucou, “com todo o respeito, ela nunca mereceu nada disso. Meu pai bebia muito e batia nela”.
Ter estado ali, naquela tarde de 29 de abril, foi experiência absolutamente reveladora para mentes e corações abertos, despidos de hipocrisia. Esses meninos e meninas estavam falando de suas vidas, com extraordinária franqueza e emoção.
Pois bem, este trabalho, que obriga a reflexão, provoca questionamento, ajuda, quem sabe, alguns meninos e meninas a concluírem que na vida do crime eles e elas mais perdem do que ganham, acaba de ser suspenso pela direção do DEGASE. Foi determinado, ao grupo de profissionais que vem trabalhando com os jovens infratores, que, em futuras encenações, está proibido: falar de polícia, falar de tráfico de drogas, falar de violência, falar das lamentáveis condições a que são submetidos os adolescentes infratores privados da liberdade no estado do Rio de Janeiro, enfim, falar de seu trágico cotidiano. Quanta hipocrisia! O que querem os diretores do DEGASE? Que os jovens sob sua responsabilidade discutam em suas peças de teatro contos de fada (que certamente jamais ouviram) ou estórias da carochinha?
Por último, vale a pena dizer que esse importante trabalho, que será agora interrompido, foi iniciativa de Paul Heritage, fundador da ONG People’s Palace Projects. Conheci Paul no início dos anos 90, quando era diretora do Departamento do Sistema Penitenciário do Rio de Janeiro. Fui procurada por ele, que queria desenvolver uma oficina de teatro com os presos da Penitenciária Lemos Brito, no complexo Frei Caneca, o que foi autorizado e resultou em trabalho memorável. Ao longo de mais de 10 anos, Paul Heritage vem trabalhando com teatro nas prisões do Reino Unido e do Brasil, acreditando na força transformadora do teatro, no poder revolucionário da arte. Na Penitenciária da Papuda, em Brasília, onde Paul começou seu trabalho nas prisões de nosso país, há uma sala com seu nome. Professor respeitado da Universidade de Londres, acabou ganhando a confiança do Ministério da Justiça que vem contratando seu trabalho, já por vários anos. Nem mesmo o brutal assassinato de seu companheiro, Carlos Calchi, em banal discussão de trânsito há quase um ano (homicídio até hoje não elucidado pela polícia, como acontece em 96 de cada 100 assassinatos neste estado) fez Paul abandonar o país e seu trabalho. Quem, agora, poderá esperar que Paul continue a acreditar que seu trabalho é possível ou vale a pena? Estou envergonhada. Com a palavra a Governadora do estado do Rio de Janeiro: Rosinha Garotinho.