Silvia Ramos a Thais Aguiar, sobre abordagem policial

 

Quais são os critérios utilizados pela polícia no Rio de Janeiro para revistar um cidadão? O que faz dele um elemento suspeito? Seguindo o rastro desses questionamentos, as pesquisadoras Silvia Ramos e Leonarda Musumeci, do Centro de Estudos de Segurança e Cidadania (Cesec) da Universidade Cândido Mendes, elaboraram o estudo “Abordagem Policial, Estereótipos Raciais e Percepções da Discriminação na Cidade do Rio de Janeiro”. Por meio de questionários, entrevistas realizadas com policiais militares e jovens de diversos segmentos sociais e regiões da cidade, as pesquisadoras identificaram critérios difusos, subjetivos, calcados em preconceitos e sem embasamento técnico, o que revela uma falha de parâmetros conceituais da inteligência policial.

Mais de 2 mil pessoas, entre 15 e 65 anos, responderam em junho e julho de 2003, a um questionário aplicado pela Sociedade Científica da Escola Nacional de Ciências Estatísticas (Science). Foram 79 perguntas sobre as experiências e percepções acerca das abordagens policiais na cidade e suas visões sobre a polícia, justiça, discriminação racial e social. Nessa entrevista, a coordenadora da Área de Minorias, Movimentos Sociais e Cidadania, Silvia Ramos, ressalta como idade, sexo, região, cor e classe social se combinam para formar o elemento suspeito predominante: o jovem negro e pobre.

 

A pesquisa concluiu que 68% dos cariocas consideram a polícia muito corrupta e 57% acham que ela é muito violenta. O que levou a equipe a decidir pesquisar o assunto?

Silvia Ramos – O que nos levou a fazer essa pesquisa foi saber que nos Estados Unidos, nos anos 90, instituiu-se a expressão racial profiling (filtragem racial), que se tornou muito importante na relação polícia e sociedade. Nessa época, uma série de estudos estatísticos e quantitativos, em inúmeras cidades, mostravam que havia uma diferença muito grande entre brancos e negros parados para revista, sobretudo, dirigindo carros em autoroads, que são muito usadas por pessoas que trabalham nas cidades e moram nos subúrbios, nos bairros de classe média e alta. Alguns estudos mostraram resultados acachapantes, que mudaram a história da relação polícia e sociedade e cunharam a expressão racial profiling, que significa exatamente um filtro racial adotado pela polícia. Baseada nesses estudos, uma série de polícias mudaram seus procedimentos em relação à abordagem policial, criando normas como, por exemplo, a obrigatoriedade do policial anotar veículo e cor do proprietário parado.

 

Essa iniciativa foi tomada por acadêmicos e organizações civis?

Foi uma iniciativa articulada pelo meio acadêmico com o movimento negro. O governo Clinton criou comissões e regulamentou procedimentos de abordagem.

 

Como foi articulado pelo Cesec?

Partimos da premissa de que a abordagem policial é aquele momento especial da relação polícia e sociedade, em que o cidadão comum tem uma experiência com a polícia fora do ambiente ou situação de crime. Ele não procurou a polícia por causa de um assalto, nem chamou o 190, nem está sendo procurado por ser suspeito. A abordagem ocorre quando ele está passando na rua. Teoricamente, a polícia pode parar qualquer um e queríamos pensar como funciona essa relação em situações que qualquer um pode viver. Queríamos também entender a relação entre experiência e opinião, ou seja, se divergem as opiniões de quem viveu essa experiência e quem não viveu. Buscamos dissecar, fazer uma anatomia dessas experiências. Quem está sendo parado pela polícia do Rio de Janeiro? Quantas pessoas? Como elas foram paradas? Em que modalidade de abordagem? Quais foram os procedimentos tomados? Qual opinião sobre a polícia e justiça?

 

Encontraram surpresas?

Um monte. A primeiro diz respeito a como as pessoas estão sendo paradas. Verificamos que a polícia faz muito mais abordagens de veículos – 48% em carros particulares em blitze e 8,3% fora de blitze – do que outras modalidades. Também encontramos um número muito alto de pessoas que relataram terem sido abordadas pela polícia de outras formas, não só em transporte coletivo, como ônibus ou trem (11,2%), van ou kombi (3,5%), moto em blitz (3%) ou fora de blitz (2,7%). Quase 20% daqueles parados pela polícia foram abordados andando a pé na rua (19,5%), o que significa muito. Essa pesquisa teve um desenho amostral bem distribuído pelos domicílios na cidade, bastante rigoroso, que incluiu visita a residências em favelas, na Zona Sul, em todos lugares.

 

Foi possível tipificar quem é abordado ou não e em que circunstâncias? Ou seja, qual é o tipo mais comum de quem é parado na rua e de quem é parado em blitz?

Há um tipo predominante para cada circunstância. Percebemos que mais do que as variáveis relacionadas à idade, sexo, território, gênero e classe social, a modalidade da abordagem era mais eficiente para explicar o que aconteceu ou deixou de acontecer. Por exemplo, quando vemos quem foi parado ou não foi parado pela polícia no conjunto das abordagens, notamos uma distribuição muito parecida com a distribuição da cidade. No entanto, isso muda quando desagregamos os tipos de abordagem. Os parados a pé na rua são muito mais os jovens, os negros, os pobres e muito mais na Zona Oeste e nos subúrbios.

A pesquisa mostra que 55% dos negros e 38,8% dos pardos passaram por revista corporal contra 32,6% de brancos. Considerando a faixa etária, os jovens entre 15 e 19 anos e 20 e 25 anos são os mais revistados (49,5% e 56,3% respectivamente), contra 24,9% das pessoas com 40 e 65 anos.

Quando a renda pessoal mensal é levada em conta, verifica-se que os mais revistados recebem até 1 salário mínimo (44%) e entre 1 e 3 salários (44,4%) contra apenas 16,6% dos que recebem mais de 5 salários. Ser parado andando a pé é mais comum na Zona Oeste (31%), nos subúrbios (26%) e na região Centro-Norte (22%) do que na Zona Sul da cidade (7%).

 

Nas entrevistas com policiais, o negro foi identificado como suspeito?

Eles evitam falar. Nas poucas entrevistas que fizemos com os policiais, o que percebemos é que há uma recusa sistemática em relação a essa impressão que a maioria dos cidadãos tem, como comprovado na pesquisa, que os elementos da aparência fazem com que o policial pare a pessoa, ou seja porque ele é negro, ou muito jovem, ou parece pobre, ou da favela e tal. Cerca de 60% acreditam que a polícia escolhe pela aparência física, incluindo a cor da pele (40,1%) e o modo de vestir (19,7%). Na opinião de 80% dos cariocas, os jovens são mais parados do que as pessoas mais velhas e para cerca de 60% os negros são mais parados que brancos e pobres mais do que ricos.

Quer dizer, os policiais se recusam a admitir isso, embora, no conjunto com outras coisas, eles acabem admitindo. Por exemplo, numa situação de quatro ou cinco garotos, negros, à noite, andando ou em carro. Mas, em geral, a polícia não tem uma articulação discursiva sobre a questão racial ou o tipo suspeito.

 

Na polícia do Rio, não se admite filtros de discriminação nem se aponta claramente seus critérios.

A pesquisa teve dois lados. O quantitativo e o qualitativo, com jovens e policiais. Com os policiais, infelizmente, nós só conseguimos fazer as entrevistas preliminares. Queríamos ter ido a fundo na pesquisa qualitativa, ouvindo-os em grupos focais e discutindo o resultado da pesquisa com jovens. Mas não foi possível. Eles dizem que ninguém é suspeito e, sim, a pessoa tem atitude suspeita. Dessa forma, não conseguimos enfrentar a temática racial e da juventude.

 

Isso mostra não ser possível fazer como nos Estados Unidos, onde pesquisas levaram a uma mudança no comportamento policial?

Exatamente. Mas queria abrir um parênteses para falar da experiência que estamos tendo em Belo Horizonte, capital de Minas Gerais, que é totalmente diferente. Fizemos lá mais de 40 entrevistas com policiais de todas as patentes e eles admitem que sim, que há preconceitos da polícia em relação à sociedade, da sociedade em relação à polícia e, entre eles, o preconceito em relação aos jovens, sobretudo das favelas. Durante a pesquisa, reconhecemos a importância do tema juventude e polícia, como essa relação é conflituosa, e desenhamos esse projeto com a polícia e com jovens em BH.

 

Não foi possível fazer esse projeto no Rio?

Não, porque as autoridades de segurança não aceitaram. Em Belo Horizonte, não só as autoridades estaduais de segurança, como também os comandantes das polícias militares estavam entusiasmados. Não tivemos nenhuma objeção ou resistência, o que favoreceu muito. Fizemos uma parceria maravilhosa, o governo acabou entrando com recursos.

 

Como funciona o projeto?

Foram quatro etapas de intervenções culturais de uma semana, com oficinas de repercussão, teatro, grafite, circo, dança e vídeo. Foram realizados shows em dois batalhões, com mais de 1.000 pessoas assistindo, com Afro Reggae, Toni Garrido, Jota Quest, entre outros. Os resultados são surpreendentes. É um projeto de mão dupla. Não só a gente quer mudar o policial, mas os jovens e nós que participamos do projeto também somos mudados por essas experiências.

O objetivo era de reduzir as barreiras, a distância entre esses dois grupos. Criar pontes entre a cultura jovem da favela e cultura da policial. É uma nova imagem para a polícia. O grupo de artistas que se formou nessa experiência vem tocar no Rio de Janeiro, no Canecão, durante a entrega de prêmios do Afro Reggae, no dia 21 de fevereiro.

 

Quais outras surpresas vocês tiveram na pesquisa?

Uma outra surpresa é que, no caso brasileiro, o ingrediente racial se articula muito fortemente com o ingrediente etário e territorial. É o que nós chamamos de IGCC — Índice de Idade, Gênero, Cor e Classe Social — mais o território. É a história da ‘geografia da dura’. Um menino preto, andando na rua da Zona Sul, é suspeito de ser criminoso, bandido ou traficante. Mas, o menino branco, dirigindo um caro próximo à favela, é um candidato a levar uma abordagem e, possivelmente, sofrer uma extorsão. Essa ‘geografia da dura’ é característica da nossa cidade. Nesse sentido, é bem diferente dos Estados Unidos. Não é possível dizer que a polícia carioca, como nos Estados Unidos, sistematicamente, pára os negros. Os meninos brancos também são muito suspeitos para os policiais, dependendo de onde estejam circulando.

 

O tratamento policial aplicado a meninos brancos e negros também difere?

Sim. Foi interessante notar nos grupos focais que tanto os meninos negros do subúrbio e da Zona Oeste como os meninos brancos da Zona Sul sabem que a polícia trata diferentemente esses grupos. Eles dizem que sabem que, na favela, a policia já chega batendo, e, com os da Zona Sul, chegam pedindo dinheiro, ‘pedindo um arranjo’.

Ser jovem é, de certa forma, ser suspeito no Rio de Janeiro. Ser jovem pobre é ser suspeito de ser traficante, criminoso e bandido. Ser jovem branquinho, da Zona Sul, é ser suspeito de ser usuário de drogas. Esse é tão parado quanto o da favela. Quer dizer, raça e cor se articula de uma forma muito intensa em relação à faixa etária. Essa questão é muito importante para compreender problemas e soluções ligadas à polícia e sociedade. Não é só ser negro. Ser negro, pobre e da favela é onde a coisa pega.

 

É preciso uma intervenção no planejamento das ações policiais?

Acho que são necessárias muitas intervenções. Temos uma lista de sugestões. Mas é fundamental que a polícia esteja aberta para, pelo menos, discutir isso. Inclusive, o tema racial, que é tabu na própria polícia. A polícia carioca, sobretudo os praças, que estão na rua, é muito mais negra do que a população em geral.

 

E muitos vêm de favelas também.

Muitos. Mas, como disse um rapaz, a polícia não tem cor, tem farda. Não tem endereço, tem batalhão. Quando ele entra na polícia, incorpora uma identidade policial que o afasta de sua identidade original. Ele é, simplesmente, policial.

 

A pesquisa põe em questão a eficiência da blitz.

Do ponto de vista policial, essas blitze são totalmente inexplicáveis. Só uma ínfima parcela das pessoas paradas nesse tipo de abordagem relatou ter havido apreensão do veículo (1,8%), apreensão de documentos (1,4%) ou encaminhamento de ocorrências à delegacia (1,9%). Então, essas blitze estão servindo para quê? A própria PM não mede a eficiência. Achamos que se trata de uma operação-visibilidade, mais do que operação para apreender armas, drogas, carros roubados e prevenir criminalidade, como se justifica. Para efeito-visibilidade, há formas muito melhores.

 

Em relação à abordagem em blitz, foi possível traçar um paralelo com o estudo norte-americano?

Fica difícil de notar esses filtros raciais porque a gente não consegue medir a distribuição da quantidade de pessoas dirigindo veículos na cidade. Só temos números da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (Pnad) que mostra um percentual muito baixo de residências nas quais o chefe de família negro tem carro. Mesmo assim, estamos longe de dizer que dos veículos dirigidos no Rio de Janeiro tantos porcento são por motoristas brancos e tantos outros, por negros. Também há um problema de idade, pois motoristas são maiores de 18 anos.

 

Esta semana foi preso um homem branco de meia idade, com mulher e criança, que transportava cocaína em seu carro. Ele vinha de Santos (SP) para entregar a droga em uma favela no Rio de Janeiro. Na mídia, noticiou-se que o homem não era tipo suspeito. Essa imagem de elemento suspeito reflete a própria visão da sociedade, que, na prática, é operacionalizada pela polícia?

Acho que sim. A polícia incorpora os estereótipos da sociedade sem nenhum grau de condicionamento.

 

É curioso também que, de acordo com a sua pesquisa, 43% da população classificaram a PM fluminense como muito racista, e em outra pergunta, 30% afirmaram que ela é mais racista do que o restante da sociedade.

Pois é. Essa questão tem dois extremos. Se por um lado, a polícia não tem respeito nenhum e rompe os próprios códigos quando faz revista na favela violentamente, por outro lado há uma interdição e um respeito absoluto em relação à questão de gênero. Ou seja, os policiais não revistam as mulheres. Então, como uma regra ou norma social foi tão incorporada pela polícia e as outras não seriam?

 

Gênero e território são dois extremos?

Isso. Em nome do combate ao crime, se entra na favela dando tiro, tapa na cara de morador, botando todo mundo de mão na parede, destratando e xingando. Como essa mesma polícia respeita, até mesmo dentro das favelas, as mulheres em relação à revista corporal? Então, se os policiais incorporaram essa, eles podem incorporar outras. Temos que descobrir como são incorporadas.
O tabu da revista em mulheres foi identificado nos grupos focais e nas entrevistas com policiais. Os comandantes dizem que tentam treinar os policiais para, pelo menos, revistar os pertences das mulheres. Mas eles não revistam. Eles não acham que as mulheres sejam suspeitas. E sabem que estão perdendo oportunidades por causa disso. Do ponto de vista do trabalho policial, se você parte de um estereótipo e não de um levantamento ou discussão aberta e técnica sobre o que é suspeito, não funciona. O que acontece é que estão parando um monte de vezes as mesmas pessoas. Aqueles que são parados e não são criminosos ou não têm culpa no cartório ficam revoltados com a polícia. Enquanto isso, a polícia está deixando de parar um monte de gente. Na nossa amostra, só 37% foram paradas.

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