Prisão provisória ilegal, presos com o direito de estar em liberdade condicional, usuários de drogas tipificados como traficantes, membros de organizações criminosas com a mesma pena de traficantes que agem sozinhos e sem uso de violência. Um intricado caminho que envolve a legislação, o Judiciário e a polícia desemboca num sistema carcerário que não comporta o alto crescimento do número de presos no Brasil, que mais do que triplicou desde 1995, passando de 148.760 a 512.285, segundo os dados mais recentes do Ministério da Justiça, de abril deste ano. Diante da superlotação dos presídios, o ministério lançou na quarta-feira um programa de R$ 1,1 bilhão para a construção de mais unidades prisionais, com o objetivo de cobrir 42.500 vagas do déficit atual de 206.507.
No Brasil, essa costuma ser a solução para um problema histórico, presente desde o século XIX, como mostra o recém-lançado “Crítica da razão punitiva: o nascimento da prisão no Brasil” (Forense Universitária), do filósofo Manoel Barros da Motta (leia entrevista no post abaixo). O livro analisa o surgimento do sistema prisional no país num momento em que o cárcere como meio de regeneração social já era questionado na Europa e mesmo nos EUA, hoje recordista em número de presos, com cerca de 2,3 milhões. Se a prisão como principal forma de punição também é discutida por estudiosos aqui, a principal resposta continua sendo o aumento da pena e do número de presos — dado que não foi modificado pela maior adoção das penas alternativas na última década, nem pelo fim da pena para usuários de drogas com a Lei 11.343 de 2006, conhecida como Lei de Drogas.
— Sempre que há uma discussão sobre a superlotação das prisões, constroem-se mais unidades prisionais. Isso só seria eficaz a curtíssimo prazo, se elas fossem construídas a toque de caixa para aliviar a tensão insuportável criada pela superlotação. Os problemas estruturais são ignorados — afirma a socióloga Julita Lemgruber, coordenadora do Centro de Estudos de Segurança e Cidadania da Universidade Cândido Mendes. — A introdução das penas alternativas provocou o que nos Estados Unidos se chama de net widening, uma expansão do nível de controle do sistema de justiça criminal. Hoje, há mais de um milhão de pessoas sob esse controle no Brasil.
Complexidade do sistema põe em xeque criação de presídios como solução
Em 1995, 80.364 pessoas cumpriram penas alternativas no país, número que subiu para 671.068 em 2009, segundo o Ministério da Justiça. Se a elas se somarem os 512 mil presos, chega-se à conta de Julita. A multiplicação das penas alternativas em mais de oito vezes se deveu à Lei 9.714 de 1998, que aumentou de um para quatro anos a pena máxima que pode ser substituída por outra alternativa, sempre para crimes sem violência. Mas não houve reflexo no sistema penitenciário do país.
Um dos principais motivos para esse cenário é a punição por tráfico de drogas, a que mais cresce no país — o número de presos mais do que triplicou entre 2005 e 2011, passando de 31.520 para 115.287, também segundo dados de abril. A Lei de Drogas de 2006 aumentou a pena mínima por tráfico de três para cinco anos, impedindo sua substituição por medidas alternativas. Apesar de o usuário não ser mais condenado à prisão, a lei não define critérios que o distinguam do traficante, nem graus de gravidade do tráfico. Para Luciana Boiteux, professora da Direito Penal da UFRJ, esse vácuo na lei permite que cada policial defina, a partir de suas próprias impressões, quem é traficante e quem é usuário — tipificação que, segundo ela, é raramente mudada pelo Ministério Público ou pelo Judiciário, e é influenciada pelas condições sócioeconômicas do acusado.
— A maior parte dos traficantes é de presos primários, que atuam sozinhos, sem armas. E os juízes têm uma tendência a justificar a pena por tráfico pressupondo que, por comercializarem numa favela, eles têm envolvimento com o crime organizado — afirma Luciana. — É necessário investir em inteligência para desmantelar quadrilhas. Prender os pequenos não resolve.
Luciana ressalta que o tráfico de drogas é um mercado funcional, alimentando uma demanda que não diminuiu com o aumento do número de presos. No livro “O fim da guerra: a maconha e a criação de um novo sistema para lidar com as drogas” (Leya), o jornalista Denis Russo Burgierman (leia entrevista no post abaixo) reforça esse ponto e questiona a prisão como única solução para o problema.
Presídios mantêm encarcerados com direito à liberdade
Pesquisador do Instituto de Estudos Comparados em Administração Institucional de Conflitos (Ineac), da UFF, Mário Miranda Neto sustenta que o debate sobre as condições do sistema carcerário é prejudicado porque é moralizado, geralmente encarado de forma apaixonada, como um embate de valores.
— Enquanto a noção de direitos humanos é instrumentalizada pelos grupos mais progressistas, os mais repressores veem certos direitos, como a educação na prisão, como privilégios. Não se trata de direitos humanos, mas de direitos civis — diz o pesquisador, que não vê a construção de mais unidades como um problema em si. — Seria bom se fosse para substituir nossas masmorras. Mas geralmente as prisões só são desativadas com a especulação imobiliária, como no caso da Frei Caneca. No Brasil, as desigualdades se reproduzem mesmo numa instituição com o máximo de controle estatal. Por isso é importante saber que prisão será construída e para quê, conhecer o projeto arquitetônico, quantos presos cada cela terá, se vai haver espaço para escolas.
Entre os direitos civis a que o pesquisador do Ineac se refere estão o direito à liberdade provisória e à liberdade condicional para determinados casos. Julita Lemgruber organiza um seminário na Universidade Cândido Mendes, no dia 6 de dezembro, das 17h às 20h, para discutir os resultados de um estudo desenvolvido entre janeiro de 2010 e junho 2011 pela Associação pela Reforma Prisional, uma organização não governamental.
Déficit de vagas também atinge os presos provisórios
Julita coordenou um grupo que prestou assistência jurídica a 130 presos provisórios no Rio de Janeiro, constatando que dois em cada três tinham o direito de responder ao processo em liberdade. Hoje há 224 mil presos provisórios no país, 52 mil deles em delegacias, e 86 mil vagas — dado que motivou a Lei 12.403/2011, que criou medidas para reduzir os casos de prisão preventiva, como o uso de tornozeleira eletrônica. A manutenção de presos que já cumpriram a pena, ou a parcela necessária para que seja concedida a liberdade condicional, é outra causa da superlotação dos presídios.
— Em alguns estados do Brasil, o número de presos que poderiam estar em liberdade condicional chega a 50% — afirma Julita. — Em geral se pensa apenas em polícia e combate ao tráfico de drogas. É como se o sistema penitenciário não fosse parte da segurança pública.
O Programa Nacional de Apoio ao Sistema Prisional, lançado pelo Ministério da Justiça na quarta-feira, pretende abrir 42.500 vagas para presos e zerar o déficit nos presídios femininos. Hoje há 35 mil presas, mas apenas 18 mil vagas para elas. A preocupação com as mulheres tem embasamento. Junto com o alto crescimento das prisões por tráfico de drogas, aumentou a participação das mulheres. Quase metade da população feminina nos presídios foi condenada por envolvimento com drogas. A proporção de presas, de 6%, sobe para 14% se considerados apenas os crimes relacionados ao tráfico.
— Muitas mulheres são uma espécie de mula do marido, outras levam drogas para os filhos nos presídios e são presas. Grande parte tem relação com o tráfico sem envolver compra e venda de drogas. Isso alimenta as estatísticas — afirma Sérgio Salomão Shecaira, professor de Direito Penal da USP. — Será que a rigor alguma coisa mudou na nossa sociedade nos últimos 20 anos para que se proíba o tráfico? O ideal seria repensar o encarceramento de maneira mais global, porque nossas prisões, como são, não oferecem nada a não ser receber mais gente.
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