Foram 30 anos de conflito armado nas ruas. Trinta anos ao longo dos quais morreram milhares de pessoas e centenas de policiais. A polícia era temida. Mais do que temida, era odiada. Vida cultural praticamente não existia. Não se realizavam concertos de música clássica, artistas jovens não se apresentavam, exibições de arte não aconteciam. O medo dominava as ruas. Grupos fortemente armados se enfrentavam em disputas quase diárias. Bombas estouravam nas esquinas e o povo se trancava em suas casas. Quando tudo se tornou absolutamente insuportável, decidiu-se por um acordo de paz.
Na sexta-feira santa do ano de 1998, sentaram-se à mesa as partes em conflito e foi assinado o acordo de paz. Parte fundamental da negociação: uma completa reforma da força policial e a criação de um órgão de controle externo da polícia absolutamente independente e autônomo. Uma Ouvidoria de Polícia com poder de investigar as ilegalidades cometidas por policiais. Uma Ouvidoria de Polícia com poder de polícia: poder de prender, de investigar por conta própria e de preparar inquéritos para o Ministério Público iniciar o processo de responsabilização judicial dos policiais que infringem a lei.
De que parte do mundo estamos falando? Da Irlanda do Norte, que integra o Reino Unido. Ali, católicos e protestantes se enfrentaram durante séculos, mas particularmente entre 1968 e 1998, quando a violência tornou-se avassaladora. No fim da década de 1990 a sensação é de que se havia chegado literalmente ao fundo do poço. Ou se agia com firmeza e rapidamente, ou a barbárie se instalaria para sempre.
No Brasil de hoje temos freqüentemente a sensação de estar chegando, também, ao fundo do poço. No Rio e em outras regiões metropolitanas do país vive-se com medo. A violência urbana vem-se tornando absolutamente insuportável. No Rio, muitos já não saem às ruas à noite. O simples ato de “ir e vir” transformou-se em ato de coragem, principalmente para as populações pobres, que vivem entre o fogo cruzado dos bandidos e da polícia. Certamente temos muito a aprender com a experiência da Irlanda do Norte.
Com o Secretário Nacional de Direitos Humanos, Nilmário Miranda, estive em Belfast, capital da Irlanda do Norte, a convite do Conselho Britânico, na segunda quinzena de maio. Fomos conhecer a extraordinária transformação em curso na polícia daquele país. Ouvimos pessoas de dentro e de fora da polícia. Ouvimos católicos e protestantes, além de políticos de diferentes partidos, inclusive do Sinn Fein, braço político do IRA (Irish Republican Army). É unânime a afirmação de que a vida de todos mudou. E mudou para melhor, embora se reconheça que ainda há muito por fazer. O Sinn Fein, particularmente, quer mais mudanças na polícia e mais rápidas. Mesmo assim, deposita apoio irrestrito na Ouvidoria da Polícia.
Nos últimos seis anos, desde que o Good Friday Agreement (Acordo da Sexta-Feira Santa) foi celebrado, a violência caiu drasticamente, inclusive a violência policial. E quando a violência policial diminui, todos saem ganhando. Nos últimos seis anos nenhum policial foi morto e, no último ano, apenas uma pessoa morreu como resultado de um tiro dado pela polícia. Todas as ações irregulares e ilegais cometidas por policiais podem e devem ser avaliadas e, quando preciso, investigadas por Nualla O’Loan, a Police Ombudsman (Ouvidora da Polícia) da Irlanda do Norte.
Com mandato de sete anos e indicada pela Rainha Elizabeth da Inglaterra, a Ouvidora tem poderes excepcionais, uma equipe de 104 profissionais, a maioria investigadores altamente treinados, recebe uma média de 3.000 queixas por ano e investiga cerca de 30% das mesmas. A Ouvidora contrata serviços de perícia independentes, pode exigir toda e qualquer informação que a polícia possua sobre um caso sob sua investigação e, quando decide investigar um caso, a polícia é obrigada a se afastar.
A Ouvidoria da Polícia da Irlanda do Norte é considerada por especialistas o instrumento de controle externo da polícia mais eficaz, rigoroso, independente e autônomo do mundo, nos dias de hoje. Criada em novembro de 2000 é respeitada pelos cidadãos e pela própria polícia, além de ser vista como fiadora do acordo de paz, no que se refere à atuação policial.
O Brasil não é a Irlanda do Norte e o Rio de Janeiro não é Belfast. Mas transformar a polícia e criar Ouvidorias fortes também é urgente no Brasil. Uma polícia que mata para combater a violência não contribui para a paz. Estima-se que a polícia tenha matado mais de duas mil pessoas no Brasil, no último ano. Ouvidorias de Polícia débeis, como as nossas, valem muito pouco. Não precisamos chegar ao fundo do poço para reagir. Ainda há tempo.