A invasão ao prédio do Capitólio, nos EUA, liderada por supremacistas brancos como Jake Angeli, 33, o “chifrudo” de rosto pintado de vermelho e azul, já concorre ao prêmio de cena mais marcante de 2021, ano que mal começou. O privilégio do supremacista não se dá apenas por ter conseguido colocar os pés em cima da mesa de Nancy Pelosi, 80, presidente da Câmara dos Representantes dos Estados Unidos, como se, moleque travesso, estivesse em casa. Após ser detido, Angeli fez greve de fome até que fosse cumprida sua exigência: queria receber apenas alimentação orgânica na cadeia. E a juíza Deborah Fine lhe concedeu esse privilégio dentro de um sistema carcerário que obriga muçulmanos a comerem carne de porco (o que sua religião proíbe) ou comida estragada.
Vários questionamentos surgiram após os ataques que deixaram cinco mortos, entre eles um policial, ao Capitólio, sede do legislativo estadunidense. As principais críticas vieram de personalidades negras e do movimento Black Lives Matter (BLM), que escancararam a discrepância no tratamento dos ativistas do BLM e dos supremacistas brancos estadunidenses nos protestos. O presidente eleito Joe Biden também comentou a situação: “Ninguém pode me dizer que, se fosse um grupo de BLMs protestando, eles não teriam sido tratados de maneira muito diferente do que a multidão de bandidos que invadiram o Capitólio. Todos nós sabemos que isso é verdade e é inaceitável”, observou o novo presidente dos Estados Unidos.
Mas receber uma alimentação orgânica na cadeia é privilégio ou direito? Segundo o sociólogo Italo Lima, pesquisador do Laboratório de Estudos da Violência (LEV) e membro da Agenda Nacional pelo Desencarceramento, tanto no caso estadunidense quanto no caso brasileiro, a seletividade do sistema de justiça é clara: “O homem nascido nos Estados Unidos, branco e nacionalista, certamente vai ter um tipo de privilégio que um homem árabe ou negro não terão. Isso nós podemos localizar também no Brasil, não apenas por uma questão racial, mas também econômica.”, afirma Lima.
Alimentação é um direito nos presídios?
A alimentação é um direito humano internacional e respaldado pela Declaração Universal dos Direitos Humanos, de 1948, bem como vários outros pactos internacionais e intergovernamentais que assegurem a alimentação adequada a todos. No Brasil, há uma série de dispositivos legais que garantem o direito à alimentação, como a Constituição Federal de 1988, e em específico para o sistema penal, a Lei de Execuções Penais, que garante o direito à alimentação adequada para a população privada de liberdade.
Aqui no Brasil, tanto as violações quanto o cumprimento dos direitos podem variar bastante de acordo com o estado e com a unidade prisional. As prisões do país são divididas entre estaduais e federais. Cada estado, assim como o governo federal, tem suas próprias práticas para as alimentações dos presos. E a coisa não é boa na maioria dos presídios, segundo o sociólogo Italo Lima:”Falta de alimentação, falta acesso adequado à água. Nós temos notícias de alguns lugares em que a Defensoria Pública entra na justiça para garantir a regularidade no abastecimento de água para a população privada de liberdade”.
No Rio de Janeiro, as prisões estaduais, hoje, abrigam mais de 50 mil pessoas privadas de liberdade, e Sandro*, 33, que saiu recentemente do Complexo Prisional de Gericinó (RJ) nos conta que, na prática, a teoria é outra. “Ninguém come comida diferenciada, não, o que é pra um é pra todos. Se o cara não come aquele tipo de comida, vai comer só arroz e feijão, se não comer arroz, come só feijão. Se não come feijão, fica com fome, não tem essa.”
Mas e se recluso tiver alguma problema de saúde específico? Não é dever do Estado, segundo a Lei de Execução Penal prover assistência de saúde aos condenados?
“Às vezes, o cara está fodidão, cheio de problema de saúde, e tem que comer X [alguma comida específica, recomendada pelo médico]. [Aí], quem tem que levar é a família, mano. O sistema penitenciário é precário, se não tiver a família pra ajudar, só Jesus na causa. Remédio é a mesma coisa, o Estado não fornece remédio pra ninguém não, cara.”, diz Sandro*. Segundo ele, logo que a comida chega no presídio, os agente penitenciários chamam um grupo de reclusos que trabalham na cadeia para conferir o alimento, e se alguma quentinha estiver estragada, todos na cadeia ficam sem comer: “aí o agente penitenciário tem que mandar vir outra comida em cima da hora, eles têm que se virar, mas o que não pode é o preso ficar sem o alimento dele, entendeu, mano? Fala pra mim quem fica sem comer, quem não luta pela comida? É o que acontece dentro do presídio. Se a comida vier ruim, vai causar um desconforto dentro do presídio.”.
“Comendo um rango azedo ou com pneumonia”
A constituição brasileira não permite a privatização do sistema prisional entendendo que ele possui posição estratégica na segurança. Porém, na alimentação, é muito comum terceirizar o serviço para empresas privadas que fornecem as “quentinhas”. Em alguns casos, a comida é feita fora da unidade prisional e entregue aos apenados, em outros, ela é preparada no próprio presídio. O contrato com as empresas privadas é regulado por editais. No estado de Minas Gerais, por exemplo, tanto os sentenciados, quanto os funcionários e a direção do presídio, têm direito à mesma alimentação.
Em 2009, nos EUA, um caso envolvendo uma empresa de alimentação terceirizada causou um motim em uma penitenciária de Kentucky. Pesquisas com os presidiários mostraram que desde que o estado terceirizou o trabalho para uma empresa privada, em 2005, a qualidade da comida piorou e “criou prisioneiros infelizes que viraram um problema de segurança”.
As violações não param por aí. Grande parte da alimentação dos apenados, hoje, é fornecida pelas famílias através dos “jumbos”. Situação que se complicou com a pandemia de covid-19. Pesquisa recente, realizada pela FGV (Fundação Getúlio Vargas), aponta que 34% das famílias de pessoas privadas de liberdade em São Paulo estavam com dificuldade de se alimentar.
No entanto, segundo Sandro, nas visitas, quando as famílias levam alimentos que os agentes penitenciários consideram “uma comida gostosa”, os agentes “reviram tudo, metem a mão, e estragam a refeição. E, assim, vai, não tem pra onde correr, não.” Ele considera toda a alimentação do presídio “horrível” e afirma que os reclusos pagam por ela ao sair: “tudo isso a gente paga quando sai da cadeia, paga uma multa, dependendo do tempo que ficou preso, é uma covardia “.
Sandro tem razão. A aplicação de multas aos apenados está prevista no código penal. O valor pago por elas vai para o Fundo Penitenciário Nacional, como forma de reduzir os gastos com presos, que custam ao Estado cerca de R$ 1 450 por mês.
No caso do Sistema Penitenciário Federal (SPF), segundo o Departamento penitenciário nacional (DEPEN), o sistema prevê o fornecimento de alimentação, vestuário e instalações higiênicas para os apenados. No mesmo contexto, as Regras Mínimas para Tratamento de Presos dizem que todo preso deve receber, em horários previamente determinados, uma alimentação de boa qualidade, bem preparada, com valor nutritivo adequado à saúde e à robustez física, considerando as necessidades calóricas diárias para um homem médio de 2000 a 3000 kcal /dia. Ainda segundo o DEPEN, são servidas seis refeições diárias e “cada preso que apresenta restrições alimentares recebe alimentação diferenciada, conforme prescrições médicas, relacionadas ao quadro clínico do interno, ou por questões religiosas e culturais”.
Para o sociólogo Italo, sempre terão casos que serão respeitados individualmente, como pessoas com diabetes ou pessoas que necessitam de alimentos diferenciados por questões religiosas, mas, de modo geral, o sistema prisional brasileiro aprofunda desigualdades: “não seria espantoso tomarmos conhecimento de pessoas que demandam tipos específicos de alimentação e não tem esse acesso garantido, porque são alimentações de massa, e, pela própria precariedade do sistema, essa instabilidade pode ser recorrente.”
Parece óbvio que a alimentação seja um direito humano, mas em um sistema prisional baseado em privações e precariedades, a luta não é por uma alimentação orgânica (que deveria ser um direito de todos) como a de Jake Angeli, e, sim, pelo direito básico à alimentação.
(*) Usamos um nome fictício para manter a segurança do entrevistado.
Outro lado
A reportagem de Ecoa entrou em contato com a Secretaria de Administração Penitenciária do Rio de Janeiro para ouvir o seu lado da história. Recebemos, após o fechamento da reportagem, a seguinte nota publicada na íntegra hoje, 20 de janeiro de 2021:
“A SEAP informa que cumpre as determinações da resolução nº 3, de 5 de outubro de 2017, onde ficam estabelecidos parâmetros para a promoção e fornecimento de alimentação aos presos. As possíveis modificações nutricionais no cardápio acontecem somente por prescrição médica.”