No dia 29 de março de 2001, a Comissão de Juizados Especiais Criminais (Jecrims) do Rio de Janeiro organizou um encontro, na Escola da Magistratura, para discutir o tratameto que essa instituição tem dado à violência doméstica. Foi um momento histórico, por vários motivos: em primeiro lugar porque a própria realização do encontro expressou o reconhecimento por parte dos juizes de que os procedimentos adotados nesses juizados não se ajustam satisfatoriamente aos casos de violência conjugal (que representam, ironicamente, a maioria absoluta de seus processos). Na ocasião foram identificados vários problemas, como o número elevado de vítimas que renunciam ao direito de denunciar seus agressores, a falta de qualificação dos conciliadores para lidar com o problema, a inconsistência das medidas e sanções propostas e a inconveniência da conversão em valores (multas ou cestas básicas), de uma violência que é, por definição, contínua, progressiva e multiforme, e que não se resume aos fatos penais registrados nas delegacias. Mais do que admitir a existência do problema, os Juizes demonstraram a disposição para alterar rotinas e repensar princípios. Se essa disposição se confirma, pode estar se iniciando uma revolução no tratamento da violência doméstica. Basta que se consiga superar as limitações da Lei nº 9.099/95, que instituiu os Jecrims, mas que desconsiderou a especificidades da violência conjugal, e que profissionais e ativistas dos movimentos de mulheres se incorporem construtivamente a esse processo.
Graças à flexibilidade da Lei 9.099, a dinâmica do atendimento a vítimas e agressores já vem sendo modificada em caráter experimental, com perspectivas promissoras. Uma experiência-piloto de substituição das penas pecuniárias por prestação gratuita de serviços à comunidade e encaminhamento dos agressores para grupos de reflexão foi iniciada em São Gonçalo e no Rio de Janeiro, em parceria com o Centro Especial de Orientação à Mulher (CEOM) e com o Instituto NOOS, respectivamente. Os primeiros resultados indicam uma redução drástica da reincidência das agressões físicas e psicológicas e o envolvimento ativo dos acusados, tanto nos trabalhos que lhes foram determinados, quanto nas dinâmicas reflexivas. Ao invés das multas irrisórias ou das cestas básicas que, perversamente, incidem sobre o orçamento doméstico e, portanto, penalizam a própria vítima, os homens autores de violência são submetidos a medidas mais efetivas de restrição de direitos e a um processo de reeducação de gênero. Ganham, com isso, os homens e as suas parceiras. Os primeiros porque têm a chance de descobrir que a construção da masculinidade pode prescindir do uso da violência e da afirmação do poder sobre as mulheres. Estas porque passam a contar com a intervenção do judiciário, no sentido de impor um ônus verdadeiro aos acusados. Desfaz-se, portanto, a sensação de impunidade. Ganha, além disso, a própria sociedade, que desenvolve recursos criativos para lidar com a violência interpessoal: nem a mera privação de liberdade que, salvo em casos extremos, serve apenas para tornar o acusado ainda mais perigoso, nem a impunidade legal, que favorece o livre exercício da violência, além de aprofundar, nas mulheres vitimadas, a sensação de desamparo. Tampouco o cenário sombrio, anterior à criação dos Juizados Especiais, quando os inquéritos e processos se estendiam por anos a fio sem resultar em punição alguma e o único recurso de que dispunham as vítimas era a barganha informal, transcorrida nas delegacias ao arrepio da lei.
A adoção de medidas reeducativas e restritivas de direitos permitirá livrar os Juizados Especiais Criminais da responsabilidade pela banalização da violência. Se bem aplicadas, essas medidas poderão transformá-los nos novos agentes de uma pedagogia da paz, capazes de reverter a tendência, comum em nossa sociedade, de perceber a violência doméstica como um fato natural e inevitável.
Para isso, entretanto, duas condições são necessárias: a primeira é que os operadores jurídicos conheçam as especificidades da violência conjugal e possam, portanto, distinguir as agressões e ameaças crônicas (equivocadamente denominadas de pequeno potencial ofensivo) dos conflitos esporádicos, de menor gravidade. A segunda condição é que os Juizados passem a avaliar sistematicamente a efetividade do trabalho desenvolvido, produzindo dados consistentes, capazes de medir o impacto dos procedimentos adotados. Isso ajudará a romper o círculo vicioso da retórica acusatória contra os Jecrims, que gera, como reação, o mero proselitismo defensivo. Com esse espírito, e com a perspectiva de aperfeiçoar suas estratégias de ação, os participantes do encontro aprovaram diversos enunciados e proposições no sentido de capacitar o corpo técnico dos juizados, de evitar a aplicação de penas de multa e de prestação pecuniária, de impedir que a vítima seja pressionada a desistir do direito de denunciar seu parceiro, de encaminhar os agressores para atendimento especializado e de avaliar os resultados obtidos.
Há um longo caminho ainda a percorrer, mas não se pode negar que as portas para um novo tratamento da violência doméstica foram abertas no Judiciário.