Legítima defesa de quem?

Escolhermos correr riscos em nome da auto-defesa é perfeitamente razoável. Mesmo que nossa chance de morrer em um assalto seja 180 vezes maior se estivermos armados, podemos argumentar que isso é problema nosso. Podemos querer assumir a responsabilidade pela forma como vamos guardar a arma em nossas casas, supondo que, se ela estiver bem escondida, longe da munição e fora do alcance das crianças, evitaremos que ela venha a matar parentes ou amigos, por acidente ou suicídio. Também podemos considerar que é problema nosso se o assaltante invade nossa residência e não conseguimos buscar a arma no esconderijo, carregá-la e empunhá-la a tempo. Tudo isso faria parte do nosso direito à legítima defesa.

Mas nosso direito individual pode se sobrepor aos direitos de outros indivíduos? Pode prevalecer sobre os direitos coletivos? Imaginemos uma situação corriqueira como a da violência praticada contra mulheres.

Pesquisadoras do CESEC, do ISER e da Universidade de Coimbra realizaram um levantamento, entre 12 setembro e 13 de outubro deste ano, em todas as Delegacias Especiais de Atendimento à Mulher da Região Metropolitana do Rio de Janeiro. Os dados coletados mostram que 65% das denunciantes que responderam voluntariamente a um questionário sobre o tema (total de 615 mulheres) se sentiriam mais seguras se a venda de armas fosse proibida; 70% se disseram a favor da proibição da venda de armas e munições. Mais de 86% dessas mulheres se dirigiram a uma delegacia para acusar pessoas que elas conheciam. Em cerca de 60% dos casos, seus próprios companheiros. Sabe-se que mulheres que vivem em comunidades dominadas pelo tráfico temem recorrer à polícia quando sofrem violência. De 2001 a 2003, não houve um só registro de estupro ou atentado violento ao pudor em toda a região do Jacarezinho, no Complexo do Alemão, ou na Maré, segundo pesquisa do CESEC/UCAM e do NESEG/UFRJ sobre crimes sexuais no Rio. Em contrapartida, foram registrados 76 estupros na Barra da Tijuca, 22 em Copacabana e 23 no Rio Comprido, para mencionar regiões com populações semelhantes. As taxas de lesão corporal dolosa confirmam a tendência. As mais baixas se encontram justamente nas áreas das grandes favelas.

Portanto, os mais denunciados pela violência que atinge as mulheres não são os traficantes e assaltantes aquartelados nas favelas, nem os milhares de cidadãos honestos que vivem nessas comunidades. São também e sobretudo os que habitam o asfalto. E são esses cidadãos do asfalto que usam suas armas para manter suas parceiras sob o regime do medo. São também eles que roubam de suas mulheres um direito constitucional, que é o direito de não sofrer violência no âmbito da família, assegurado pelo artigo 226, § 8º da Constituição. E, para os autores de violência doméstica, não é preciso sequer tocar em uma arma para intimidar suas companheiras. Basta lembrar sua existência, deixá-la à mostra ou olhar para o armário onde está guardada. E, se não têm uma arma, muitas vezes ameaçam adquiri-la. Quem trabalha com vítimas de violência doméstica conhece bem essas situações. Engana-se quem pensa que são casos isolados: no Brasil, de acordo com a pesquisa domiciliar realizada pela Fundação Perseu Abramo, em 2001, a cada 20 segundos uma mulher foi ameaçada com armas de fogo. Engana-se mais ainda quem supõe que são poucos os chamados cidadãos de bem que cometem violência contra mulheres. Mais de dois milhões de mulheres foram espancadas naquele ano em nosso país, o que significa um espancamento a cada 15 segundos. Serão os espancadores todos bandidos? Obviamente, não é necessário ter armas para praticar violência doméstica. Mas a presença das armas é um dos fatores que impede as vítimas de reagir, de denunciar e até de escapar de seus agressores. O apoio à proibição da venda de armas é ainda maior entre as denunciantes agredidas em suas próprias casas (76%) e pelo parceiro íntimo (74%), o que parece uma indicação clara de que elas anseiam pelo direito de viver sem medo, tanto fora como dentro seus lares. Esse é, sem dúvida, um direito, justo e democrático, que não interfere em outros direitos individuais ou coletivos. Esse nós não temos o direito de cassar.

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