Maus dados

A diretoria de Estudos Sociais do Ipea e o Centro de Estudos de Segurança e Cidadania da Universidade Candido Mendes (CESeC/Ucam) promoveram no ano passado uma série de encontros para discutir o problema das informações sobre criminalidade, violência e justiça criminal no Brasil. Participaram desses seminários especialistas de cerca de 20 instituições nacionais, entre elas o Iser, o Ilanud, o Crisp/UFMG e a Fundação João Pinheiro, além de dois importantes criminólogos americanos: James Linch, da American University, e WiIliam Chambliss, da George Washington University.

Foi unânime o diagnóstico de que o sistema brasileiro de informações criminais é extremamente precário, fruto do descaso de décadas, tanto em nível federal quanto na maior parte dos estados. Os dados existentes são poucos, de má qualidade e de difícil comparação. Mesmo para se conseguir uma informação criminal elementar, como o número de homicídios no país, é preciso recorrer ao Ministério da Saúde, que contabiliza as mortes por causas externas, incluindo homicídios intencionais e acidentais.

A integração nacional dos dados de segurança e justiça é praticamente nula. A Secretaria Nacional de Segurança Pública vem tentando reunir e organizar as poucas informações disponíveis, mas não existe ainda, nem nos estados, nem na esfera federal, um esforço orientado para a construção de bases de dados criminais integradas, consistentes e comparáveis.

A pesquisa empírica sobre criminalidade e violência padece, por seu turno, de escassez de recursos, dispersão de esforços e dificuldade de acesso às fontes de informações. Não à toa, como afirma o documento elaborado pela coordenação dos seminários Ipea/CESeC, subsistem grandes lacunas, tanto nas bases de dados quanto nas abordagens adotadas. A pequena circulação de informações entre pesquisadores dos diversos estados e instituições, o fraco entrosamento entre metodologias quantitativas e qualitativas, e a própria precariedade dos dados existentes contribuem, assim, para tornar o avanço do conhecimento bem mais lento do que seria desejável, em da face gravidade dos problemas a serem enfrentados nessa área.

A queda das taxas de criminaridade em outros países, nos últimos anos, deve Suscitar algumas reflexões. Na maior parte das grandes cidades americanas, por exemplo, houve uma expressiva melhora dos indicadores de segurança pública desde o início dos anos 90, o que pode ser creditado a diversos fatores, entre eles a prosperidade econômica da era Clinton, a diminuição da chamada epidemia do crack e a mudança na pirâmide etária, com redução do segmento mais propenso ao envolvimento com o crime (jovens de 18 a 25 anos de idade).

Mas também contribuiu para esse resultado a reorientação das políticas de segurança, sobretudo nas esferas do policiamento preventivo e das técnicas investigativas, possibilitada, entre outras coisas, pela montagem e aperfeiçoamento de um amplo sistema de informações criminais.

Esse sistema, nos Estados Unidos, envolve pelo menos 14 grandes bases de dados, sendo as mais conhecidas a Pesquisa Nacional de Vitimização Criminal (NCVS), o Relatório Uniforme de Crimes (Uniform Crime Report -UCR) e seu sucessor, o Relatório Nacional de Incidentes, além das Estatísticas Prisionais Nacionais (NPS). Praticamente todos os atores -vítimas, policiais, presos, administradores prisionais, promotores e juízes -são ouvidos periodicamente, em milhares de cidades por todo o país. Com base nessas informações é que foi possível determinar que tipos de crimes estavam crescendo, em que lugares e horários, a que taxas, contra quem, perpetrados por quem, e obter centenas de outras informações necessárias para traçar políticas de controle da criminalidade, ancoradas em diagnósticos precisos, não em impressões subjetivas.

Algo semelhante ocorreu no Brasil com relação à inflação: não seria possível traçar um plano de estabilização eficaz se não houvesse todo um conhecimento acumulado sobre o fenômeno. Tampouco seria possível monitorá-lo sem a existência das várias pesquisas de preços e custo de vida realizadas por instituições governamentais e privadas.
Cabe indagar: por que não existe aqui um esforço equivalente de registro, monitoramento e análise da criminalidade – tema tão crucial para o bem-estar da população? Por que ainda são tão escassos os recursos materiais e humanos que governo e sociedade destinam à produção das mais elementares informações criminais?

O planejamento e o monitoramento de qualquer política pública -na área econômica ou criminal- requer coleta, sistematização e análise de dados básicos sobre o fenômeno. Assim como reduziu a inflação, o Brasil pode também diminuir a criminalidade a níveis toleráveis. É possível encontrar uma saída racional para a dramática situação da segurança pública que hoje vivemos, se forem investidos nessa área recursos compatíveis Com a importância do problema e se forem dedicados ao conhecimento da criminalidade esforços análogos aos que hoje são dispendidos, dentro e fora do governo, para acompanhar e entender o comportamento das variáveis econômicas. Caso contrário, nossas políticas de segurança- se é que merecem esse nome – continuarão tateando no escuro, atirando a esmo e repetindo erros acumulados em décadas de autoritarismo, ineficiência e descaso.

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