Vista como um mal menor, milícias expandem sua atuação e poder no Brasil
“Não há tirania mais cruel que a que se exerce à sombra das Leis, e com as cores da Justiça.” (Montesquieu)
Formadas por ex e atuais agentes do Estado, as milícias surgem em meados dos anos 90 com um discurso de contraposição ao tráfico. Inicialmente chamada por alguns como grupos de “autodefesa comunitária”, os paramilitares foram defendidos e encorajados por políticos e empresários. Vale um destaque especial para o atual presidente da República que, no ano de 2018, já em campanha eleitoral, elogiou os grupos em entrevista à rádio Jovem Pan. “Tem gente que é favorável à milícia, que é a maneira que eles têm de se ver livres da violência. Naquela região onde a milícia é paga, não tem violência”, afirmou.
O que motiva grupos paralelos ao Estado é o lucro, e com os paramilitares não seria diferente. Ao surgirem, os milicianos se mantinham, principalmente, pela cobrança de uma “taxa de segurança”. Porém, não demorou muito para os grupos se organizarem e evoluírem para a taxação de toda sorte de serviços, além de grilage, tráfico de minérios, desvio de combustíveis e até mesmo tráfico de drogas e outras áreas com lucros em potencial.
Além de sua atuação no espectro econômico, as milícias rapidamente se tornaram parte do poder político. Segundo o professor José Cláudio Souza Alves, sociólogo e ex-pró-reitor de Extensão da Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro (UFRRJ), as milícias se tornam, ainda nos anos 90, o próprio Estado. Os paramilitares se elegem vereadores, prefeitos, deputados e exercem influência em vários outros políticos que ajudam a eleger.
A influência desses grupos é extensa e, muitas vezes, desconhecida. Basta lembramos que no gabinete do filho do atual presidente trabalhavam diversas pessoas relacionadas com as milícias ou que até hoje os mandantes do assassinato da ex-vereadora Marielle Franco continuam desconhecidos.
Operações policiais em questão
A morte de Marielle em 2018 e a queda de dois prédios na comunidade da Muzema em 2019 reacenderam o debate sobre o poder das milícias. Os paramilitares, que antes eram vistos como um mal menor, estão assumindo um controle cada vez mais expressivo e chegam a dominar municípios inteiros, agindo como uma metástase no sistema político e econômico do estado.
O primeiro relatório divulgado pela Rede de Observatórios da Segurança Pública – RJ (CESeC – UCAM) acompanhou as operações realizadas de janeiro a junho de 2019 e um surpreendente resultado pode ser visto: o número de operações policiais monitoradas no estado do Rio de Janeiro aumentou em 42% de março a junho deste ano, em relação ao mesmo período de 2018, passando de 203 para 288.
No entanto, o documento revela ainda mais informações. Na região da 35 Áreas Integradas de Segurança Pública – AISP (Tanguá, Itaboraí e Rio Bonito), conhecida por ser o reduto de uma milícia extremamente violenta, havia o registro de apenas 10 operações. Sua vizinha, São Gonçalo, por sua vez, conta com a impressionante marca de 59 operações. Hoje, cerca de um mês depois do relatório, Itaboraí invade os jornais com diversas notícias sobre o descontrole que a cidade chegou sob o julgo das milícias. Revelações assustadoras como a localização de cemitérios clandestinos, onde os milicianos enterravam corpos de seus desafetos.
Do outro lado do estado, na 24º AISP (Seropédica, Queimados e Japeri), onde, segundo o Jornal Nacional (03/06/2019), atuava a maior milícia do Rio de Janeiro, houve apenas 13 operações. Se engana quem ainda tem a imagem de paramilitares que lucravam com a circulação de vans e a cobrança de taxas de segurança. A milícia ali atuava com licença das três esferas de poder para lavar dinheiro através da extração de areia e captação de água mineral.
Essa dinâmica se repete na disposição das operações na cidade do Rio de Janeiro. Bairros dominados majoritariamente por milicianos são pouco ou nunca incomodados pelo poder público. Em outra matéria, o Fantástico (15/06/2016) anuncia uma mega esquema de tráfico de saibro controlado por milicianos em Jardim Sulacap. O material chegou a abastecer a obra da Transolímpica.
A realidade se repete nos diversos outros bairros sob controle de milicianos. Na Zona Oeste, região de atuação do famoso grupo “Liga da Justiça”, a situação fica ainda mais evidente. Na região da 31º AISP (Barra da Tijuca, Recreio dos Bandeirantes e Vargens), nenhuma operação.
Na região da 27º AISP (Paciência, Santa Cruz e Sepetiba), foram registradas 9 operações, sendo 5 delas em Santa Cruz. E na região da 40º AISP (Campo Grande, Cosmos e Senador Vasconcelos), apenas 6 operações, todas em Campo Grande, todas nas favelas ainda controladas pelo tráfico.
Caminhando em direção à zona norte, temos a 14º AISP (Deodoro, Jardim Sulacap, Realengo e Bangu). Nesta área, o diferente tratamento que o Estado dá para os grupos paralelos fica gritante. Foram registradas 27 operações, sendo 24 delas nas favelas de Bangu (Vila Aliança, Vila Kennedy, Vila Vintém, Coreia, Rebu, Cavalo de Aço, Muquiço e Curral das Éguas) e 3 em Realengo, nas favelas do Fumacê e Batan (ADA), que estavam em confronto com milicianos.
E, por fim, a área da 18º AISP (Cidade de Deus, Jacarepaguá e Tanque) com 25 operações. Um olhar mais atento revela mais uma vez uma estranha distribuição das ações policiais. O número de operações encontra-se distribuído dessa forma: 19 operações na Cidade de Deus (CV); 3 na Taquara; 2 no Tanque; 1 na Gardênia Azul. Ressalta-se que, das 3 operações realizadas na Taquara, 2 foram realizadas nas favelas Teixeiras e Santa Maria enquanto se encontravam sob domínio do tráfico e as duas operações realizadas no Tanque estão ligadas à guerra entre milicianos e traficantes por territórios na região da Praça Seca, que, diga-se de passagem, registrou o terceiro maior número de operações na cidade.
Milícia é um “mal menor”?
Vejam, caros leitores, ao longo deste artigo buscou-se demonstrar que a ideia de milícia como “um mal menor” ainda é o que em grande medida rege a política de segurança pública. Uma política que opera em uma estratégia de guerra às drogas e se mantém por uma lógica de criminalização da pobreza constituída através do racismo estrutural. Isso não quer dizer que o tráfico não deva ser enfrentado – todos os grupos criminosos devem ser enfrentados. O alerta é que esses grupos paramilitares expandem cada vez mais seus territórios contando com a ajuda ou a omissão de diversos setores da sociedade.
Existe um projeto de poder por parte desses grupos.
Em sua fala para Escola de Magistratura do Rio de Janeiro, no dia 07 de junho de 2019, o deputado federal Marcelo Freixo exemplificou bem a questão: “ (…) O discurso de crime organizado vai no sentido contrário de crime organizado. A ideia de crime organizado é onde tem exposição de armas e conflito. E digo muito claramente: quanto mais organizado é o crime, menos conflito ele precisa. Isso acontece por razões óbvias, o crime mais organizado é o mais eficiente em relação a poder e dinheiro”.
Quanto mais dentro do Estado, mais organizado ele é e de menos armas ele precisa”, afirmou o deputado
No mesmo evento, o Dr. Claudio Ferraz, um dos responsáveis pela maior investigação sobra as milícias no Rio de Janeiro, abordou o modo de agir desses grupos: “As organizações criminosas trabalham com 3 formas de atuação visando obter essa proteção no que diz respeito a corrupção. Cooptação: elas identificam quem tem condições de eventualmente se contrapor ao lucro e, então, buscam cooptar esse agente; intimidação: buscam intimidar para inibir o desenvolvimento de qualquer ação repressiva à sua própria organização; e eliminação”.
Em suma, as milícias são hoje um dos maiores desafios para nossa sociedade e precisamos tratar do tema com seriedade. O professor José Cláudio aponta alguns pontos fundamentais para o combate aos paramilitares: “Para começar, precisamos mudar nossas políticas de drogas. Outro ponto, precisamos repensar a Polícia Militar. Precisamos criar políticas sociais para jovens envolvidos com o crime, como incentivo à educação, cultura, mobilidade e esporte. Esses jovens também precisam de acompanhamento psicológico e um emprego digno.” Tais medidas, porém, só fazem sentido se a sociedade começar a enxergar, de fato, as milícias e a lógica de guerra às drogas como um mesmo vírus que corrompe nossa cidade.