A figura de uma mulher grávida que muitas vezes se encontra em situação de rua chama atenção e tensiona uma série de limites e fronteiras morais
Gizely, 19 anos. Grávida pela terceira vez; dessa vez uma menina, que já tem nome. Atualmente, vive em uma ocupação na área central da cidade do Rio de Janeiro com seu companheiro Eduardo, que vende de roupas a pequenos utensílios domésticos em um shopping-chão[1] na Central do Brasil. Assim como ele, Gizelly faz uso de algumas drogas esporadicamente. Descobriu a gravidez no quinto mês ao conversar com uma médica do Consultório na Rua[2]. O pré-natal foi realizado na ocupação após um longo trabalho de sensibilização feito pela equipe do equipamento, que explicou a importância do exame para Gizely. A principal preocupação da gestante era de que tirassem seu bebê; os dois anteriores haviam sido encaminhados para adoção, ela mesma concordando com a decisão. Agora, sua situação era diferente; Gizely estava com um companheiro de quem gostava, fazia alguns bicos ao longo do dia para ganhar dinheiro e pretendia procurar um lugar melhor para ficar assim que a criança nascesse.
A história de Gizely é uma colcha de retalhos de outras diversas histórias de mulheres como ela. Mulheres em sua grande maioria negras, muitas vezes em situação de rua e que usam drogas – ou não. Cada trama do tecido dessa colcha é um fio que conduz a um ponto em comum: estruturas de poder estatal que se apresentam no exercício do que se entende por cuidado e proteção social e que, em última instância, determinam o futuro dessas mulheres.
Fronteiras morais de mulheres grávidas em situação de vulnerabilidade
A figura de uma mulher grávida que muitas vezes se encontra em situação de rua chama atenção e tensiona uma série de limites e fronteiras morais. A ideia de que se trata de uma sexualidade errada, suja e irresponsável aciona a necessidade de intervir sobre aquele corpo, sob a justificativa do cuidado e proteção, especialmente da criança. Apesar de em maneira geral atribuir-se à droga a suspensão de qualquer discernimento e capacidade de tomar decisões racionais, a mulher acaba por ser responsabilizada pelo provável abandono de seu filho.
Neste sentido, entender a atividade estatal como algo contraditório e reconhecer que o Estado não é uma unidade coerente e pode atuar de maneiras fragmentadas, nem sempre expressamente repressivas, nos ajuda a entender como a vida das mulheres em questão é gerida e administrada através do que entendemos como dispositivos generificados[3]. Em outras palavras, trata-se de compreender que a dominação masculina não é a única relação existente entre gênero e poder, mas que formas de poder culturalmente femininas produzem o que se conceituou como governo doce da tutela[4].
No caso de mulheres grávidas em situação de extrema vulnerabilidade no Rio de Janeiro, o exercício desses dispositivos generificados se dá através de diversas instituições presentes nos campos da saúde, assistência social e saúde mental, por meio do cuidado – uma característica naturalmente associada a figura feminina – direcionado a elas. O receio de perder a guarda de seus filhos é o que faz essas mulheres evitarem buscar e aceitar atendimento em equipamentos do Sistema Único de Saúde, uma vez que é prática recorrente do poder judiciário, por meio da Vara da Infância, do Adolescente e Idoso afastar mães que não tenham “condições mínimas” de criar seus filhos. Buscar ou aceitar atendimento em tais serviços significa passar a existir, a produzir o que se entende como legibilidade[5]. Ou seja, documentar sua existência, gerar registros e rastreamentos acerca de seu paradeiro.
Em alguns casos, a recusa dessas mulheres ocorre inclusive ao não se dirigirem a uma maternidade no momento de dar à luz. São numerosas as histórias de mães que adentraram um hospital para ter seus filhos e saíram de lá sem eles, muitas sem ao menos se despedirem. Isto porque, em muitas unidades hospitalares, a orientação é acionar o poder Judiciário assim que uma mulher que aparente uso de drogas chegar para ter seu bebê. No hospital, é preenchida uma ficha pela equipe de assistência social que tem como objetivo fazer uma análise da capacidade daquela mulher de maternar. Para além de produtores de legibilidade, esses mecanismos são postos em prática sob a justificativa do cuidado e atenção, exercidos, nesse caso, pela figura da assistente social.
Cabe apontar que esses mecanismos não podem ser reduzidos a esforços constituídos apenas pelo Estado. As técnicas de governo empregadas são coproduzidas nas tensões entre Estado, movimentos sociais e não governamentais. No caso das mulheres em questão, estas tensões podem ser verificadas através de profissionais que fazem parte da Rede de Atenção Psicossocial e, concomitantemente, se articulam de maneira autônoma para discutir formas de garantir que os direitos dessas mulheres sejam assegurados e que a elas seja dada a possibilidade de exercer sua autonomia. Muitos profissionais criam, ainda, mecanismos que visam “burlar” as orientações de instâncias hierárquicas superiores.
Para além da atuação dos profissionais em questão, a própria recusa dessas mulheres de ir aos equipamentos de saúde fazer acompanhamentos médicos demonstra uma intensa negociação entre aqueles envolvidos. A negociação ainda ocorre através de orientações oferecidas às mulheres caso elas expressem a vontade de permanecer com os filhos: como se portar, como providenciar documentos de identificação civil, arrumar o cabelo ao irem a equipamentos e como agir em possíveis audiências no caso de buscarem a guarda.
São essas tensões e disputas descritas aqui que produzem o governo doce da tutela, exercido no limite entre o cerco e o cuidado[6]; toda a rede de serviços de saúde e assistência que é mobilizada para universalizar o acesso à direitos acaba por se materializar em excesso de atenção, algo que muitas vezes não é desejado pelas mulheres. Além disso, essa rede de profissionais e serviços está repleta de paradoxos porque pode mobilizar programas de vigilância e exigências normativas através de intervenções e é formada por profissionais que carregam seus próprios julgamentos morais. Por fim, gere-se não só o corpo da mulher e a criança, mas o futuro e a vida de várias Gizelys.
(*) Paula Napolião é pesquisadora do Centro de Estudos de Segurança e Cidadania (CESeC) e doutoranda do Programa de Pós Graduação em Sociologia e Antropologia da UFRJ.
[1] Comércio informal que trata, basicamente, da venda de objetos coletados no lixo, expostos em lençóis e toalhas nas calçadas
[2] Equipamento cujo objetivo é ampliar o acesso da população em situação de rua aos serviços de saúde de maneira a ofertar atenção integral à saúde para um grupo que se encontra em situação de extrema vulnerabilidade e muitas vezes com vínculos familiares interrompidos. BRASIL. Consultório na Rua, cuidado para todos. Ministério da Saúde, 2015. Disponível em <http://www.blog.saude.gov.br/index.php/promocao-da-saude/50077-consultorio-na-rua-cuidado-para-todos>
[3] VIANNA, A; LOWENKRON, L. O duplo fazer do gênero e do Estado: interconexões, materialidades e linguagens. Cadernos Pagu, n. 51, 2017.
[4] VIANNA, A; A Produção de Destinos: ação tutelar, escolhas e viabilidades na gestão da infância. In: SOUZA LIMA, Antonio Carlos de (org.). Tutela: Formação de Estado e Tradições de Gestão no Brasil. Rio de Janeiro, Laced/E-papers, pp.367-397. 2014.
[5] DAS, V; POOLE, D (Eds). Anthropology in the Margins of the State. Santa Fe: School of American Research Press, 2004.
[6] MARTINEZ, M. M. Andando e parando pelos trechos: uma etnografia das trajetórias de rua em São Carlos. UFSCAR: Dissertação de mestrado em Antropologia Social, 2011.