Artigo: O racismo no apagão de dados sobre violência policial

FOTO: RICARDO MORAES/REUTERS

O silenciamento das informações sobre o Maranhão é também manifestação contundente de como o preconceito se apresenta na formulação de políticas públicas

Uma das maiores barreiras para quem tenta entender o racismo no Brasil é a ausência de dados sobre o perfil racial das populações estudadas. Muitas vezes, o registro da cor/raça de alunos, pacientes e beneficiários de programas sociais apresenta falhas. O Brasil é um país que discute e enfrenta o problema do racismo a contragosto.

No caso do Maranhão, existe um apagão de dados. O estado é o único entre os sete monitorados pela Rede de Observatórios da Segurança que não acompanha a cor dos mortos pela polícia. Foi o que mostrou o boletim “Pele alvo: a cor da violência policial”, que revelou o chocante dado: uma pessoa negra é morta pela polícia a cada quatro horas na Bahia, Ceará, Pernambuco, Piauí, Rio de Janeiro e São Paulo. Ou seja, fica evidente que para as autoridades maranhenses esse não é um assunto importante a ser dimensionado. No entanto, não acompanhar esses dados também é uma forma de racismo.

O Brasil é um país que discute e enfrenta o problema do racismo a contragosto. Muito frequentemente, só quando são obrigados – por lei – a preencher o campo “cor/raça”, funcionários públicos e privados o fazem. Claro que é importante mencionar que funcionários seguem os padrões e as orientações de seus superiores e suas corporações. Uma forma de sabermos se um ente público ou privado se importa com o racismo é olhando o cuidado que ele tem com os dados sobre cor/raça. Mas quando se trata de pessoas mortas, a ausência da informação é inadmissível e chocante. Há anos, as certidões de óbitos têm obrigatoriamente, por lei, o campo “cor”, que deve ser obrigatoriamente preenchido, além de nome, sexo, data de nascimento etc.

Essa omissão (intencional?) de dados, além de revelar um misto de descaso e incompetência, gera prejuízos incalculáveis ao tentar produzir o apagamento do racismo presente nas ações dos agentes do Estado. O que ainda dificulta que a sociedade possa dimensioná-lo, compreendê-lo, discuti-lo publicamente para daí encontrar maneiras para sua superação.

O racismo que atua de modo a retirar a humanidade das pessoas atingidas tem no silenciamento uma de suas facetas mais nefastas. Ao não produzir dados sobre a cor/raça das vítimas da letalidade policial, os governantes dão um recado claro de que essas mortes não são importantes nem ao menos para virarem números.

ALÉM DE REVELAR UM MISTO DE DESCASO E INCOMPETÊNCIA, OMISSÃO DE DADOS GERA PREJUÍZOS INCALCULÁVEIS AO TENTAR PRODUZIR O APAGAMENTO DO RACISMO PRESENTE NAS AÇÕES DOS AGENTES DO ESTADO

Dados são essenciais para compreendermos a realidade de um bairro, de uma cidade, de um país. Sem dados sobre aproveitamento escolar, por exemplo, governantes ficam às cegas, sem saber onde investir recursos para melhorias de aspectos educacionais. Produzir, divulgar e debater os dados é tarefa de governos democráticos que se pautam na melhoria da vida de seus cidadãos. Quando não há dados, não há problema. E no caso do racismo, a ausência de dados é um silenciamento que mantém as engrenagens racistas da nossa sociedade em movimento. Dessa forma, a omissão de dados estabelece mecanismos de exclusão de um grupo racialmente dominante. O que dificulta a implementação de práticas antirracistas e de políticas públicas. É o estado do Maranhão legitimando o racismo institucional ao ponto de apagar pessoas negras até mesmo na sua morte. Para que se combata o racismo nas instituições é preciso que ele seja visto.

Uma operação realizada pela Polícia Militar do Maranhão, em Icatu, em setembro de 2020, terminou com a imagem de corpos negros empilhados na carroceria de um veículo da polícia estampada nos jornais. Poucos dias depois, uma operação da polícia na cidade maranhense de Bacabeira resultou na morte de duas pessoas, com a imagem do corpo de um jovem negro publicada. Nós, nitidamente, enxergamos a cor dos mortos nessas ações, mas o governo do estado do Maranhão, não.

Os corpos que estampam as páginas de polícia nos jornais maranhenses são de pessoas negras. Mas sem os dados não é possível ter provas de que a polícia do Maranhão mata mais pessoas negras do que a dos outros seis estados analisados pela Rede de Observatórios da Segurança.

A redução dos números absurdos e revoltantes de letalidade policial passa necessariamente pelo debate sobre produção de dados, pois é apenas com eles que se pode eleger problemas centrais a serem combatidos e se acompanhar as políticas públicas e seus resultados. O racismo também se perpetua através de silêncios e lutar para que as polícias melhorem os dados de cor/raça das vítimas é uma das tarefas importantes para aqueles que acreditam numa sociedade mais justa e igualitária para todos.

Deste modo, o silenciamento dos dados é também manifestação contundente de como o racismo se apresenta na formulação de políticas públicas. Diante dessa realidade percebemos que a segurança pública no Brasil oscila cambaleante entre a produção de estatísticas hediondas, entrecortada pela produção de silenciamentos e ocultações.

Infelizmente, no Maranhão, somos levados a pensar que a política de segurança do estado não tem compromisso com diagnósticos, com a implementação de políticas públicas de segurança e com o impacto que elas podem gerar em determinados grupos sociais. Nesse sentido, é fundamental denunciar e reivindicar que haja maior rigor e competência na produção e na publicização de dados concernentes à violência que atinge especificamente a população negra – o que não tem sido a prática adotada pelo governo estadual.

É espantoso que mesmo estando em 2021, vivenciando todas as discussões sobre racismo no Brasil e especialmente sobre racismo e violência policial, as secretarias de segurança desses estados, que são administrados por gestores ditos progressistas e antirracistas, até hoje permitam que seus funcionários deixem de preencher esses dados, legando à população o obscurantismo da falta de informações sobre a cor da morte produzida pela polícia.

*Pablo Nunes é doutor em ciência política pelo IESP-UERJ (Instituto de Estudos Sociais e Políticos da Universidade do Estado do Rio de Janeiro). Coordena a área de pesquisa da Rede de Observatórios da Segurança e o Panóptico.

*Luiz Eduardo Silva é coordenador do Observatório da Segurança no Maranhão, professor doutor da Universidade Federal do Maranhão. Coordenador da REP (Rede de Estudos Periféricos). Professor do EJA Prisional no Presídio Regional de Pinheiro.

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