A pesquisa recém-divulgada da Fundação Oswaldo Cruz sobre o perfil e o número dos usuários de crack no país é um importante alerta e chega em boa hora: o Senado está prestes a votar um projeto de lei que coloca o Brasil na contramão da história do ponto de vista da política sobre drogas, sacramentando a internação compulsória do dependente químico e aumentando a pena mínima para o tráfico, que passa a ser mais alta do que aquela para homicídio.
A pesquisa é um alerta, em primeiro lugar, porque revela números com precisão jamais vista. A partir de um sofisticado método (NSUM) que estimou o número de usuários, estejam eles onde estiverem, a partir de visitas domiciliares com 25.000 entrevistados, chegou-se à cifra de 370.000 usuários de crack e outras formas similares de cocaína fumada no país (www.fiocruz.br). Este número equivale a 0,8% da população das capitais brasileiras, ou seja, menos da metade do indicado por outros levantamentos exclusivamente domiciliares, com utilização de amostras muito reduzidas. Ademais, os que defendem os resultados de pesquisas anteriores ao rigoroso estudo da Fiocruz seguem afirmando que o Brasil vive uma epidemia de crack, quando não temos séries históricas confiáveis, utilizando metodologia efetiva para avaliação de populações não domiciliadas, como faz o NSUM. A situação detectada, embora grave, está muito distante do quadro de caos que se tentava difundir e que serve de justificativa para estratégias equivocadas e ultrapassadas na área das políticas sobre drogas.
Além da pesquisa domiciliar, a equipe da Fiocruz realizou também, em todas as regiões do país, levantamento dos locais utilizados por usuários de drogas como o crack e similares, superando em muito análises anteriores que se limitavam a estudos com algumas dezenas de pessoas, sem representatividade estatística. Justamente a partir desse levantamento é que se tem a dimensão da tragédia brasileira: longe de termos uma epidemia de crack, temos, como já se disse, uma epidemia de abandono. 40% dos usuários de crack estão em situação de rua, vivendo um quadro de extrema privação social. Uma população sem alternativas ou perspectivas, para quem a droga é a única fonte real de prazer, como lembra Carl Hart, professor da Universidade de Columbia. Em resumo, estamos diante de um relevante problema de saúde pública entre os “deserdados da terra” (como definiu Francisco Inácio Bastos, coordenador do projeto e pesquisador sênior da Fiocruz) e não entre pessoas encontráveis em seus domicílios, por meio de métodos tradicionais.
A pesquisa é, também, um alerta para aqueles que acreditam em internação compulsória e outros métodos medievais para tratamento dos usuários problemáticos de drogas. Na pesquisa da Fiocruz, 80% dos usuários, revelaram desejar tratamento, o que não quer dizer que as pessoas desejem ser privadas de sua liberdade e internadas em comunidades terapêuticas, em sua maior parte mantidas por grupos religiosos que fazem da adesão aos rituais e à prática da “fé” a estratégia de uma suposta “cura”. Precisamos investir recursos públicos, sobretudo, no atendimento e tratamento em meio livre.
Nunca é demais repetir: a grande maioria de usuários de drogas lícitas e ilícitas não desenvolve dependência e jamais vai precisar de tratamento porque faz uso recreacional. Apenas 9% dos que usam maconha, 17% dos que usam cocaína, e 15% dos que usam álcool se tornam dependentes. Aliás, é bom lembrar que nos Estados Unidos, além dos 22 estados que já legalizaram o uso medicinal da maconha, há outros dois que legalizaram o uso recreacional dessa substância: Colorado e Washington. Quando o país que levou o mundo a uma fatídica e genocida guerra às drogas começa a mudar de rumo, vale ficar atento.