“Quando a ocupação terminar, a comunidade não vai precisar de serviço social ou coisa que o valha. A gente vai é precisar de muitas dezenas de psicólogos e psiquiatras, pra cuidar da cabeça do pessoal. Estão todos apavorados, amedrontados e angustiados.” Foi esta a reação de uma liderança comunitária do Complexo da Penha, em reunião realizada pelo AfroReggae e o CESeC, quando se discutia como mobilizar a sociedade carioca para superar a tragédia que envolve o mais longo conflito entre a polícia e o tráfico que já se viu no Rio de Janeiro.
Mais de meia centena de homens, mulheres e crianças foram feridos a bala e atendidos em hospitais da região, no espaço de 35 dias. Balas disparadas num confronto que parece não ter data para acabar. Mas, no Complexo da Penha e no Complexo do Alemão, encontram-se 21 comunidades, onde vivem milhares de pessoas (200 mil, para os líderes comunitários, e 97 mil, segundo o IBGE) que vão precisar, muito tempo depois de cessado o tiroteio, de auxílio para cicatrizar as feridas da alma — estas, sim, muito mais difíceis de curar.
São impressionantes os relatos de crianças apavoradas com os tiros, de moradores que não dormem à noite e temem sair para o trabalho, de serviços básicos suspensos, deixando os bairros sem escola e a população sem luz e coleta de lixo. É possível imaginar isso acontecendo num bairro ou condomínio de classe média da cidade?
Já são quase duas dezenas de mortes. As autoridades insistem no confronto como principal estratégia para enfrentar a criminalidade e os traficantes que atormentam a vida da cidade. No entanto, nossos índices de violência teimam em continuar crescendo e, nessas áreas pobres, principalmente, o que se vê é muito sofrimento físico e emocional.
Será possível que nós, cariocas — cidadãos em geral, lideranças comunitárias, autoridades, formadores de opinião, policiais e especialistas em segurança pública —, não conseguimos, juntos, encontrar formas de reduzir efetivamente a criminalidade que respeitem a vida e os direitos de todos?
O que está acontecendo no Rio hoje me faz lembrar uma visita a Belfast, na Irlanda do Norte, há seis anos. Estava lá para conhecer a experiência fantástica que aquele país vivia depois de um amplo plano de aperfeiçoamento da polícia e da política de segurança pública. Impactada com a força daquelas mudanças, eu perguntava às pessoas como aquilo havia sido possível. Afinal, a Irlanda do Norte vivera 30 anos de guerra civil, com a morte de milhares de pessoas e centenas de policiais, quando grupos armados se enfrentavam nas ruas e as bombas explodiam nas esquinas e nos bares.
Em resposta à minha pergunta, a dirigente de uma organização não-governamental que havia exercido papel decisivo no esforço pela paz disse: “Em Belfast, havíamos perdido toda e qualquer noção de sociabilidade. Não havia vida cultural na cidade. Nenhum artista aceitava convite para se apresentar por aqui. Não tínhamos concertos ou exposições de arte. À noite, não se saía de casa: todos paralisados pelo medo. Havíamos chegado literalmente ao fundo do poço. Ou nos uníamos e apostávamos que a paz era possível, ou seríamos destruídos.”
Talvez tenha chegado a hora de assumirmos essa mesma postura no Rio de Janeiro. Começando por entender que o problema de segurança é um só para todos. Que o medo, a dor e os danos causados pela violência em comunidades como as do Complexo do Alemão e da Penha são tão importantes quanto os que atingem moradores de áreas “nobres”. Que não se pode aceitar com indiferença uma quantidade absurda de mortes e de balas perdidas só porque ocorrem numa área pobre da cidade. Que a vida e os direitos de cada cidadão devem ser respeitados.
No dia 23 de junho, no Complexo do Alemão, será inaugurado um novo núcleo do Grupo Cultural AfroReggae e lançado o Fórum de Lideranças Comunitárias do Complexo do Alemão e da Penha, com a presença dos moradores, de artistas, formadores de opinião, representantes de ONGs, especialistas em segurança pública e autoridades governamentais do município, do estado e do governo federal. Será uma ótima oportunidade para manifestarmos nossa real disposição de construir a paz para todos.