O Brasil tem a peculiaridade de ser, ao mesmo tempo, pioneiro e conservador, quando se trata do tema polícia e gênero. No âmbito da Polícia Judiciária (a Polícia Civil) houve avanços significativos, tanto na ocupação do espaço profissional pelas mulheres, quanto na adoção de medidas de enfrentamento da violência de gênero. Já a Polícia Militar, de natureza ostensiva e preventiva, experimenta um processo mais lento de incorporação da mão de obra feminina e a abordagem da violência de gênero ainda não foi assimilada como parte de sua missão, embora, na prática, represente uma parcela significativa dos seus atendimentos cotidianos.
Graças aos esforços bem sucedidos dos movimentos de mulheres no país, foram criadas, em meados da década de 1980, delegacias policiais especializadas no atendimento às mulheres. O sucesso desse empreendimento, a despeito dos inúmeros problemas que ainda persistem, pode ser medido pelo número de mulheres que se dirige a essas unidades especializadas: somente no estado do Rio de Janeiro, onde existem cerca de 160 delegacias policiais, quase 40% das mulheres que registraram ocorrências em 2001 o fizeram em alguma das 9 Delegacias Especiais da Mulher.
O ingresso das mulheres nas Polícias Militares brasileiras também ocorreu, na maior parte dos estados, ao longo da década de 1980. Entretanto, nesse período em que se criavam as Delegacias da Mulher, a Polícia Militar não mereceu dos movimentos sociais a mesma atenção dispensada à Policia Civil no que diz respeito às questões de gênero. Provavelmente, em função das barreiras que distanciam o mundo civil do militar, o ativismo feminista não percebeu as potencialidades do policiamento ostensivo no enfrentamento da violência contra mulheres, nem se deu conta da novidade e do impacto que a presença feminina no universo do militarismo poderia representar. Nessa área, portanto, não floresceram iniciativas no sentido de estabelecer parcerias com a PM, visando ao melhor aproveitamento do trabalho policial e, tampouco, propostas de valorização do contingente de policiais femininas. As PMs, por sua vez, também não parecem ter se dedicado a enfrentar desafios que nem os próprios movimentos sociais haviam formulado ou concebido. O que se percebe, então, é que não foi desenvolvida, nem pela Polícia nem pelas organizações sociais, uma reflexão sobre a importância de uma política de incorporação de mulheres nos quadros policiais, assim como da atuação da PM nos casos de violência doméstica e de gênero. Duas questões distintas, embora conectadas, mas que têm em comum o fato de terem sido negligenciadas ou enfrentadas sem um planejamento racional.
O resultado é que, na ausência de normas de conduta e de treinamento específico para atuar em casos de violência contra a mulher, cada agente, ao se defrontar com o problema, opera de modo improvisado, com base em suas visões pessoais, marcadas, muitas vezes, por noções equivocadas e idéias preconceituosas. O mesmo acontece quando se trata da absorção das mulheres policiais: na falta de uma visão institucional do lugar feminino na corporação, prevalecem o senso comum e as avaliações de cada policial, baseadas nas representações que informam suas experiências empíricas. Por outro lado, não havendo associações de defesa dos interesses das mulheres policiais ou uma cultura policial feminina que resgate e valorize a história e as singularidades da contribuição das mulheres, as percepções sobre seu lugar na corporação flutuam ao sabor dos julgamentos individuais.
Um dos sintomas disso é a quase inexistência de dados sobre os contingentes femininos das PMs de todo o Brasil. São poucos os estados em que há controle estatístico rigoroso sobre quem são as mulheres, onde estão alocadas, que tipo de atividade desenvolvem, como tem sido seu desempenho etc. Esse é um sinal de que, passados mais de 20 anos do período médio de assimilação de mulheres aos seus quadros, as polícias militares brasileiras não se preocuparam ainda em avaliar os impactos da presença feminina e, portanto, em desenvolver uma política de aproveitamento e valorização desse contingente. O potencial da força feminina, no sentido de valorizar a imagem da PM, de favorecer novas possibilidades de ação policial e de dar visibilidade às questões de gênero ainda não foi, em suma, explorado pela própria corporação nem, tampouco, pelos movimentos sociais, que durante muito tempo desconsideraram a importância dessas forças policiais na construção da nossa democracia.
Para compreender a forma como as Polícias Militares têm lidado interna e externamente com as questões de gênero, o Centro de Estudos de Segurança e Cidadania (CESeC) da Universidade Candido Mendes, juntamente com a Universidade de Brasília e a Universidade Federal do Rio Grande do Sul, com o apoio da Fundação Ford, vem desenvolvendo a pesquisa intitulada Mulheres policiais: impacto da presença feminina nos quadros das policias militares brasileiras, cujo término está previsto para abril de 2004. Além da análise de um banco de dados montado a partir de questionários preenchidos pelas PMs de 20 Unidades da Federação, a pesquisa inclui três estudos de caso qualitativos – no Rio de Janeiro, Distrito Federal e Rio Grande do Sul. Seu objetivo fundamental é ampliar o conhecimento e estimular o debate, ainda muito incipiente, sobre polícia e gênero em nosso país.