O racismo estrutura um cotidiano de violações que até agora não conseguimos superar, justamente porque atingem, predominantemente, jovens negros e negras moradores das periferias
Observatórios vêm se tornando mecanismos relevantes de monitoramento e divulgação de dados em várias esferas de conhecimento, como meio ambiente, políticas sociais e ciências. A missão deles é captar e produzir informação para transformá-la em conhecimento útil a diferentes atores. Eles são sistemas organizados e estruturados de coleta, descoberta e análise de informações sobre um determinado setor de atuação.
Durante um ano, os observatórios da Rede de Observatórios da Segurança Pública monitoraram acontecimentos sobre violência e polícia em cinco estados (Bahia, Ceará, Pernambuco, Rio de Janeiro e São Paulo).
Nesse monitoramento, de junho de 2019 a maio de 2020, foram registrados 12.559 fatos, reunidos a partir da análise diária de jornais, sites e redes sociais. Monitoramos 16 indicadores, entre eles a violência contra a população LGBTQI+, chacinas, linchamentos, ataques de grupos criminais, ações de policiamento, sistemas prisionais, racismo e violência contra mulheres.
Os resultados são impactantes e revelam muito sobre as dinâmicas de segurança e atos violentos nesses estados. Por exemplo, descobrimos que o policiamento é o foco de 56% dos fatos registrados. Encontramos um mar de notícias em sites e jornais e nas redes sobre ações policiais. Entre 7.062 ações policiais, registramos 984 adultos mortos, 712 feridos e 27 crianças e adolescentes mortos.
As palavras “operações”, “prisões”, “suspeito”, “drogas” e “tráfico” são as que circulam com mais frequência nos discursos sobre violência. Em contraste, a palavra “negro” apareceu apenas uma vez nos mais de 7.000 registros relacionados a operações e patrulhamentos. Estudos sobre homicídios, violência e segurança pública mostram que o racismo, ou o viés racial, é a variável estruturante mais persistente da violência e da segurança. Seja em crimes interpessoais, como feminicídio, seja em linchamentos, violência contra a população LGBTQI ou policiamento, o racismo atravessa as dinâmicas e processos. No entanto, como mostra o pequeno número de menções ao tema no nosso monitoramento (só 50 casos, em mais de 12 mil), raramente é declarado abertamente.
MORTES DECORRENTES DE AÇÕES POLICIAIS, MESMO QUE NUNCA SEJAM ANUNCIADAS COM A COR DAS VÍTIMAS, OCORREM QUASE EXCLUSIVAMENTE NAS PERIFERIAS
Quando um policial aborda um jovem negro na periferia, alegando que ele é suspeito de tráfico de drogas, esse ato não é contabilizado como racismo. No entanto, os meninos negros de favelas aprendem desde pequenos a temer a polícia. Estão cientes de que podem sofrer abordagens injustificadas, humilhações, espancamentos e morte. Sabem que agentes de segurança, independentemente de serem negros ou brancos, vestem a “cor” das corporações quando colocam a farda, e que essas corporações reproduzem discriminações e racismo desde que foram fundadas, há mais de um século.
Mulheres negras também enfrentam comportamentos violentos por parte da polícia — como mostra a recente denúncia sobre uma comerciante que teve o pescoço pisado por um policial militar de São Paulo. Elas sabem, ainda, que estão menos protegidas de agressões de companheiros e ex-companheiros violentos, e que podem ser vítimas de violências ordenadas por facções do tráfico que dominam lugares onde moram. Nos sistemas penitenciário e socioeducativo, onde predominam detentos pretos e pardos, e onde uma parte expressiva ainda sequer foi julgada e condenada, a ordem é a ausência de direitos elementares.
Notícias sobre homicídios, chacinas e linchamentos raramente circulam com indicações de cor ou raça das vítimas, mas sabemos que idade, cor e classe se combinam de forma explosiva com território. Em determinados bairros, a palavra chacina já denota que as vítimas são predominantemente jovens e negras. Mortes decorrentes de ações policiais, mesmo que nunca sejam anunciadas com a declaração de cor das vítimas, ocorrem quase que exclusivamente nas periferias e bairros mais pobres.
Precisamos, como país, enfrentar a verdade de que o racismo é o motor da violência. Reconhecer que o racismo estrutura um cotidiano de violações que até agora não conseguimos superar. Não superamos justamente porque esses fenômenos atingem, predominantemente, jovens negros e negras moradores das favelas e periferias. Mesmo que ações violentas contra negros e favelas provoquem indignação e dor a cada vez que aparecem como notícia, a verdade é que o impacto passa rápido, ainda que as vítimas sejam uma menina como Ágatha ou meninos como João Pedro, Juan ou Miguel. Porque somos racistas. E a face onde esse racismo se expressa de forma mais evidente é no cotidiano violento das polícias.
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Silvia Ramos é coordenadora da Rede de Observatórios da Segurança e do Cesec (Centro de Estudos de Segurança e Cidadania). Cientista social com doutorado pela Fundação Oswaldo Cruz em violência e saúde, é coautora de livros como “Elemento suspeito: abordagem policial e discriminação na cidade do Rio de Janeiro” (2005), “Mídia e violência: tendências na cobertura de criminalidade e segurança pública no Brasil” (2007) e “Política, direitos, violência e homossexualidade” (2006).