Estudo mostra custos elevados da política de proibição de drogas em São Paulo e no Rio de Janeiro. Governos direcionam recursos em medidas que atingem violentamente pessoas negras e pobres, quando poderiam usá-los em políticas para beneficiá-las
O Brasil não está em guerra, certo? Errado. Muito errado. Uma guerra invisível para a maior parte da sociedade, ignorada pela maioria do povo brasileiro, está em curso. Uma guerra que custou, em um único ano, e apenas para os estados do Rio de Janeiro e de São Paulo, R$ 5,2 bilhões.
Esse foi o valor drenado do orçamento dos dois estados para matar, processar e encarcerar sobretudo jovens negros e moradores das favelas e periferias envolvidos no varejo de drogas ilícitas. Em qualquer guerra, como sabemos, há sempre os chamados “danos colaterais”; neste caso, são as vítimas das balas perdidas, que nunca erram o alvo. Atingem sempre moradores de favelas e periferias. Sobretudo negros. Matam crianças também. Sobretudo negras. E, nessa guerra, muitas vezes morrem policiais. Sobretudo negros.
Afinal, de que guerra estamos falando? Da guerra que, nos Estados Unidos, desde os anos 1970, convencionou-se chamar de “guerra às drogas”. O Brasil entrou nessa guerra de cabeça.
A guerra que causa dor e sofrimento nas áreas pobres e periféricas do país, não reduz o consumo de drogas psicoativas, nutre a violência e a corrupção e traduz a face mais violenta do racismo “à brasileira”. A política nacional de proibição de drogas constituiu-se, com efeito, no principal álibi para justificar o fortalecimento do aparato policial-militar e a brutalidade com que se trata o traficante de drogas. Aqui, no caso, não se está falando de qualquer pessoa que venda drogas ilícitas em qualquer local da cidade. O alvo escolhido pelos operadores do sistema de justiça criminal para travar sua “guerra” são as pessoas que trabalham no varejo das drogas nas favelas.
O que se propõe não é apenas uma discussão sobre desperdício de dinheiro público, mas uma reflexão sobre decisões orçamentárias que perpetuam iniquidades e ilicitudes. Em tempos de pandemia e de crise financeira, discutir orçamento público é obrigação de todos nós
Para entender o custo orçamentário dessa guerra, ou seja, quanto ela custa aos cofres públicos, o Cesec (Centro de Estudos de Segurança e Cidadania) lança o projeto inédito “Drogas: quanto custa proibir”, destinado a calcular quanto custa para as instituições do sistema de justiça criminal implementar a Lei de Drogas (lei n. 11.343/2006) nos estados do Rio e de São Paulo. Estamos falando do trabalho de policiais (civis e militares), juízes, promotores e defensores públicos, e do custo de presos e adolescentes privados da liberdade. Esses estados foram escolhidos porque, embora não produzam drogas, hospedam grandes centros de consumo, estão na rota de distribuição para outros mercados e exercem influência na agenda política de segurança pública e justiça criminal no país.
Foi fácil chegar aos números que desvendamos? Absolutamente não. A falta de transparência sobre os valores que essas instituições consomem para implementar a legislação sobre drogas no país é chocante: incongruência das informações, discrepâncias nos dados, dezenas de pedidos baseados na Lei de Acesso à Informação ignorados ou respondidos com dados muitas vezes inutilizáveis. Ao final dessa odisseia, chegou-se a R$ 5,2 bilhões, um valor certamente muitíssimo subestimado, sobretudo porque não foi possível calcular, por absoluta falta de informações, os custos das operações policiais — que podem envolver um grande número de policiais, com uso de viaturas, “caveirões” e até helicópteros, a utilização de armas de muitos calibres e disparos de centenas de tiros.
Mesmo subestimado, o valor obtido pelo Cesec levanta sérias questões para o debate: precisamos urgentemente falar sobre orçamento e decisões políticas que direcionam os recursos públicos para a guerra às drogas. Trata-se de uma política que sistematicamente viola direitos e estimula práticas ilícitas – assassinatos por agentes do Estado, desaparecimentos forçados, prisões sem o devido processo legal, penas provisórias que se tornam definitivas, tortura em ambientes prisionais, corrupção de agentes do Estado, fortalecimento da atuação de milícias etc. Investir na guerra às drogas significa, na prática, utilizar o dinheiro público para perverter as missões constitucionais dos órgãos de segurança e Justiça. Por que se persiste em gastar tanto a cada ano numa política que produz incontáveis oportunidades de malversação e descaminho?
É necessário pressionar as autoridades públicas para que produzam e divulguem dados confiáveis e de qualidade que possibilitem à sociedade entender e avaliar o trabalho das suas instituições. Mais ainda, a sociedade precisa saber quanto dinheiro público é investido para fazê-las operar e como funcionam os mecanismos de tomada de decisão que determinam a alocação desses recursos.
É preciso rastrear as despesas orçamentárias no sistema de justiça criminal e expor os caminhos pelos quais elas se convertem em financiamento de inconstitucionalidades e ilicitudes. Falar sobre orçamento público é falar também sobre racismo e desigualdade. Os governos não apenas direcionam bilhões de reais todos os anos para custear políticas que atingem violentamente as pessoas negras e pobres, como deixam de investir em políticas públicas que poderiam beneficiá-las diretamente.
Ao fazer essa conta e estimar investimentos alternativos, os números chocam. O valor gasto com a guerra às drogas nos dois estados em um único ano seria suficiente para comprar 108 milhões de doses de vacina contra a covid-19. Os R$ 4,2 bilhões gastos em São Paulo seriam suficientes para custear, por exemplo, um ano de educação para 840 mil adolescentes ou garantir renda básica de R$ 600 mensais, por um ano, para 583 mil famílias. Com R$ 1 bilhão gastos com proibicionismo no Rio de Janeiro, seria possível custear a educação de 252 mil adolescentes ou garantir a renda básica para 145 mil famílias.
O que se propõe, portanto, não é apenas uma discussão sobre desperdício de dinheiro público, mas uma reflexão sobre decisões orçamentárias que perpetuam iniquidades e ilicitudes. Em tempos de pandemia e de crise financeira, discutir orçamento público é obrigação de todos nós.
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Julita Lemgruber é socióloga, coordenadora do Cesec e coordenadora-geral do projeto “Drogas: quanto custa proibir”.
Renata Neder é geógrafa e coordenadora do projeto “Drogas: quanto custa proibir”