Uma guerra perdida

Cresce o cultivo de coca na Colômbia, dizia manchete do caderno Mundo, no dia 9 de março último. De acordo com relatório da agência de inteligência dos Estados Unidos (CIA), o cultivo da coca, planta utilizada para a produção da cocaína, cresceu 24,7% na Colômbia no último ano, a despeito do Plano Colômbia de combate ao narcotráfico, para o qual os EUA contribuem com US$ 1.3 bilhão. Ao final, informa o texto que o subsecretário de Estado para assuntos de narcotráfico, Rand Beers, admitiu que a política americana de combate às drogas não tem significado uma redução na oferta de drogas.

Aliás, Barry McCaffrey, antecessor de Beers, ao deixar seu posto reconheceu que, a despeito dos bilhões de dólares gastos nessa luta, ao longo da era Clinton, nunca as drogas haviam estado tão puras, tão baratas e tão acessíveis em seu país. Ora, tem a guerra contra as drogas, inspirada no modelo ditado por Washington, alguma chance de vitória?
Entre 1980 e 2000 o orçamento federal norte-americano para o combate às drogas passou de 1 bilhão para 18.5 bilhões de dólares. Estimativas conservadoras mostram que, nos Estados Unidos, entre 1981 e 1998, o preço do grama de cocaína caiu de 191 para 44 dólares e o grama de heroína passou de 1.194 para 317. No mesmo período, a pureza cresceu: passou de 60 para 66% no caso da cocaína e de 19 para 51% no caso da heroína.

Quanto à acessibilidade, pesquisa de 1999 revelou que estudantes secundários consideram fácil adquirir drogas ilícitas nos Estados Unidos: 88% dos entrevistados disseram que é fácil comprar maconha e 47% afirmaram poder comprar cocaína sem dificuldades.

Anualmente morrem, nos Estados Unidos, aproximadamente 500.000 pessoas em conseqüência do uso de drogas lícitas (400.000 pessoas têm mortes relacionados ao uso do tabaco e 100.000 morrem em conseqüência da ingestão de álcool), e apenas 20.000 mortes relacionam-se ao uso de drogas ilícitas. Ora, dirão alguns, estes números não servem para condenar as drogas lícitas pois a quantidade de pessoas que usam álcool e tabaco é infinitamente maior, logo, o número de mortes também deve ser, necessariamente, maior. No entanto, a ponderação pelo número de usuários revela que as drogas lícitas são de fato muito mais letais: morrem 506 pessoas em cada 100.000 usuários de álcool e tabaco, contra 166 em cada 100.000 usuários de maconha, cocaína, crack e heroína.

Além de não impedir que as drogas se tornassem mais baratas, puras e acessíveis, o modelo norteamericano de combate ao narcotráfico contribuiu para abarrotar as prisões, aumentando exponencialmente os gastos da Justiça e do Sistema Penitenciário. E, o que é pior: recente estudo realizado nos Estados Unidos mostrou que 36% de todos os presos condenados por crimes relacionados com drogas eram pequenos infratores, sem nenhum registro anterior de comportamento violento.
A violência que acompanha a expansão do mercado de drogas, nos EUA ou em outras partes do mundo, decorre em grande medida do próprio modelo repressivo adotado, que pode ser descrito, no mínimo, como esquizofrênico: proibem-se as drogas, mas não as armas de fogo; criminaliza-se o comércio de substâncias menos letais do que o álcool e o tabaco, colocam-se na cadeia milhares de usuários e pequenos traficantes sem qualquer periculosidade, e ao mesmo tempo se incentiva a guerra generalizada dentro do tráfico e contra ele, o armamento até os dentes das polícias e da população, a mobilização de exércitos, a resolução à bala de disputas comerciais.

Um estudo do Ministério da Justiça norteamericano admite que os conflitos no interior do mercado de drogas ilícitas, junto com a proliferação das armas de fogo, estão entre os principais determinantes da violência letal naquele país, que grande parcela dos homicídios se relaciona ao tráfico e que cerca de 2/3 desses homicídios são cometidos com armas de fogo.

Mas, mesmo assim, continua-se a apostar na guerra como solução para o problema das drogas. Uma guerra perdida, que gera mais morte e destruição do que evita, que estimula não só a violência, como a corrupção da polícia e dos políticos, contra um mercado capaz de movimentar em todo o mundo 400 bilhões de dólares por ano só com a venda de drogas – sem contar os ganhos da indústria de armas. Será isso esquizofrenia ou hipocrisia?

O Brasil é hoje exemplo no mundo quando se fala em política de combate à Aids. O sucesso dessa política foi resultado de campanhas corajosas e agressivas, ao longo das quais superamos preconceitos e enfrentamos interesses poderosos. Está mais do que na hora de se iniciar um debate sério sobre a descriminalização das drogas, lembrando que através de campanhas educacionais, também corajosas e honestas, poderemos evitar que pessoas morram pelo abuso de drogas pesadas. Não é com a repressão policial violenta, com gastos de somas fabulosas (que não temos!) ou com campanhas mentirosas que já não enganam ninguém, muito menos nossos jovens, que estaremos criando um mundo livre de drogas. Muitas drogas ilícitas já foram legais no passado. Vamos ter que aprender a conviver com elas e desenvolver uma política consistente e conseqüente de redução dos danos das drogas pesadas. Mais ousadia e menos hipocrisia é do que precisamos para avançar nessa área, como conseguimos indiscutivelmente avançar na luta contra a Aids.

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