Violência urbana: Quando a pauta é a mídia

Observatório da Imprensa, n. 328

De 1980 a 2002, 695 mil brasileiros foram assassinados. A taxa de homicídios no Brasil mais do que duplicou nesses 23 anos, passando de 11,7 homicídios por 100 mil habitantes em 1980 para 28,5 homicídios em 2002 — índice que coloca o Brasil entre os países mais violentos do mundo. Durante muito tempo, a sociedade e as instituições brasileiras assistiram a esta matança em silêncio. Afinal, as mortes atingem principalmente grupos desfavorecidos: jovens do sexo masculino (especialmente na faixa de 15 a 24 anos), na maioria pobres, quase sempre negros e moradores de periferias ou favelas dos grandes centros urbanos.

A partir dos anos 1990, diferentes setores da sociedade despertaram para a gravidade do quadro e começaram a desenvolver ações não só de denúncia desta situação, mas também nos campos das pesquisas e das experiências de gestão de políticas públicas de segurança. No início da década de 1990 também foram criados o Viva Rio, o Afro Reggae e outras iniciativas voltadas para responder aos temas da violência nas cidades e nas favelas. O Instituto Sou da Paz, em São Paulo, foi criado em 1999.

Os jornais também responderam a esta nova percepção da problemática da segurança, alterando estratégias de cobertura e pouco a pouco deixando as velhas práticas das reportagens de polícia, quase sempre sensacionalistas e vinculadas à troca de favores com fontes policiais. Os jornalistas que cobrem a área, geralmente ligados às editorias de reportagem local, hoje são mais qualificados e encontram maior reconhecimento de seus colegas, como seria de se esperar de especialistas num dos temas mais candentes do Brasil.

A mudança é fundamental, já que a mídia tem desempenhado um papel cada vez mais importante no debate público sobre o tema, influenciando a opinião da sociedade e as políticas de Estado. Na apuração do caso Tim Lopes, nas respostas a rebeliões e casos de corrupção nos presídios, na investigação de denúncias de corrupção policial e, mais recentemente, no processo de mobilização e votação no Congresso do Estatuto do Desarmamento, a mídia foi decisiva na qualidade e rapidez das respostas do governo e da sociedade.

Opção de cobertura

Considerando o papel decisivo dos meios de comunicação nos países democráticos para o agendamento de políticas públicas, em janeiro de 2004, o Centro de Estudos de Segurança e Cidadania (CESeC) , da Universidade Candido Mendes, decidiu realizar um diagnóstico sobre como os jornais cobrem a violência no Brasil. Os resultados da pesquisa foram apresentados em um seminário na segunda-feira (2/5), na Universidade Candido Mendes, no Rio, e debatidos por uma mesa que contou com os jornalistas Marcelo Beraba, Aluízio Maranhão, Paulo Motta, Marcos Barros Pinto, José Luiz Alcântara e o diretor do Instituto Sou da Paz, Denis Mizne.

A pesquisa realizada pelo CESeC analisou textos veiculados pelos jornais Folha de S.Paulo, O Estado de S.Paulo, Agora São Paulo, O Globo, Jornal do Brasil, O Dia, Estado de Minas, Diário da Tarde e Hoje em Dia ao longo de 35 dias, distribuídos por cinco meses do ano de 2004 (maio a setembro). Em média, a circulação dos nove veículos, somada, é de 1,2 milhão de exemplares diários.

Durante cinco meses, a equipe do CESeC esquadrinhou as suas páginas, reunindo reportagens, artigos, colunas, colunas de notas e as pequenas notas noticiosas chamadas nas redações de colunão. Diferentemente da maioria das pesquisas sobre a mídia, que se preocupam em analisar o discurso da notícia ou o seu impacto sobre o leitor, nossa pesquisa teve como objetivo perceber tendências da cobertura através da análise quantitativa da produção jornalística sobre violência e segurança pública.

Para selecionar a amostra a ser analisada, optamos por uma técnica de amostragem conhecida como semana composta, adequada numa pesquisa que tem o objetivo de identificar tendências gerais da cobertura, ou seja, o tratamento editorial dos temas ligados à violência ao longo de determinado período de tempo. Na clipagem dos jornais, decidimos concentrar o foco sobre a violência urbana, já que as cidades concentram 80% da população brasileira [dados do Censo Demográfico de 2000 do IBGE, divulgados na publicação Brasil em Síntese e também os atos violentos. Notícias sobre crimes rurais, de colarinho branco e o contrabando não foram recortadas.

Ao analisar os 2.514 textos resultantes, percebemos logo que os jornais não cobrem a violência com a mesma intensidade. Dois jornais do Rio de Janeiro — O Dia e O Globo — claramente assumiram uma posição de destaque no volume de notícias, com 37,3% da amostra; somando as notícias dos dois à cobertura do Jornal do Brasil, percebe-se que os três jornais do Rio de Janeiro são responsáveis por 45,3% dos textos analisados, ainda que estes três diários representem um terço dos veículos pesquisados.

Do ponto de vista da posição nacional dos jornais, os dados não deixam dúvidas de que O Globo, frente a veículos de porte similar, como Folha e Estado de S.Paulo, optou por se dedicar de maneira clara e contundente à cobertura de violência, o que não é o caso dos outros dois veículos de porte nacional pesquisados.

Foco no Rio

Considerando o foco geográfico das matérias, isto é, o local ao qual a matéria se refere, independentemente da cidade do jornal que a produz, o Rio de Janeiro aparece no centro da cobertura sobre violência, criminalidade e segurança. Quase a metade dos textos analisados diz respeito ao estado, enquanto os 51,8% restantes se dividem entre São Paulo (21,3%), Minas Gerais (17,5%) e outros estados (6,4%). Há ainda uma parcela de textos (6,6%) na qual não é possível identificar o local da notícia — em geral, itens que falam do país como um todo.

A predominância de textos sobre o Rio de Janeiro parece ser devida a diferentes estratégias editoriais na abordagem das notícias relacionadas à violência. Os jornais do Rio mostram-se fortemente centrados nas questões locais: O Dia, por exemplo, dedicou 94,5% dos textos da amostra à criminalidade e à segurança no estado do Rio de Janeiro, seguido pelo Jornal do Brasil (82,2%) e O Globo (78%). Todos estes percentuais estão acima dos verificados pelos outros jornais em relação aos seus estados de origem.

O jornal paulista Agora destinou 74,7% de seu espaço à violência no estado de São Paulo, acompanhado pela Folha de S.Paulo (46,8%) e pelo Estado de S. Paulo (44,7%). Em Minas, a exceção ficou por conta do Hoje em Dia, que com 79,1% praticamente empata com O Globo em percentual de cobertura local, seguido pelo Diário da Tarde (67,7%) e pelo Estado de Minas (67,2%).

A opção dos jornais cariocas de concentrar esforços na cobertura da violência no estado do Rio de Janeiro pode ser vista como uma louvável tentativa de denunciar, analisar, retratar e debater a dramática crise vivida pelos fluminenses na área da segurança pública. Mas também deixa de oferecer aos leitores a chance de comparar a situação do Rio com a de outros estados. Um exemplo: ao longo de todo o período analisado, o Jornal do Brasil não produziu uma única matéria sobre a violência em São Paulo.

Ao mesmo tempo, a Folha de S.Paulo e o Estado de S.Paulo dedicaram considerável espaço às notícias do Rio de Janeiro. Na Folha, as notícias sobre o Rio somaram 28,8%, contra 46,8% sobre São Paulo e apenas 3,4% sobre Minas Gerais. No Estado, os textos de temática paulista somaram 44,7%, enquanto as matérias sobre o Rio são 28,5%. As reportagens, artigos e notas sobre Minas Gerais somam 4,5%.

Escala reduzida

O perfil dos textos analisados também indica que os jornais têm abdicado de enriquecer a cobertura sobre violência e segurança com alguns tipos de abordagem. O espaço que os veículos analisados dedicaram a textos opinativos sobre estes temas foi muito reduzido: durante o período da pesquisa, houve pouquíssimos editoriais (1,4%), artigos (1,2%) e colunas (0,3%) sobre o tema. Mais de um quarto (27%) da cobertura é composta de pequenas notas informativas, sem qualquer tipo de contextualização.

Finalmente, ao analisar os principais temas tratados pelas redações, percebe-se que as forças de segurança — nas quais se incluem as várias corporações policiais (Federal, Civil, Militar e Técnica), as Forças Armadas e as guardas municipais — são as protagonistas do noticiário, sendo o assunto de 40,5% dos textos.

O outro tema dominante é o ato violento em si, assunto de 21% das matérias. Os desdobramentos e repercussões destes atos somam 16,2% — ou seja, 37,2% da cobertura gira em torno de crimes. Mas a análise das matérias deve ser considerada não apenas por aquilo que foi abordado, mas também pelo que não foi. Temáticas centrais como a violência enquanto fenômeno sócio-cultural-político (3,3%) e direitos humanos (2,4%) aparecem muito pouco. Também chama a atenção o pequeno número de reportagens e artigos baseados em estatísticas e pesquisas.

Entre os 2.514 textos analisados, 1.018 tiveram como foco central as chamadas forças de segurança (Polícia Militar, Polícia Civil, Polícia Federal, Polícia Técnica, Forças Armadas e guardas municipais). Parece haver uma tendência na consolidação de um jornalismo de fiscalização policial, dado que o segundo maior percentual (16,5%) dentre os textos que abordaram as forças de segurança é ocupado pelos que relatam crimes (ou denúncias de crimes) cometidos por policiais. Mas o tratamento editorial da cobertura envolvendo as forças de segurança ainda é muito mais pautado pelo acompanhamento dos diferentes tipos de ação policial (57,6% das notícias que se centraram nas forças de segurança, trabalharam a ação policial).

Esse tipo de cobertura, centrado na ação do policial ou funcionário público, reflete uma perspectiva limitada sobre o aparelho policial. Os elementos estruturantes desse aparelho, de cujo bom funcionamento depende uma presença eficaz das forças na sociedade, aparecem pouco. Tais elementos, sejam eles ligados às questões corporativas (condições salariais e de trabalho, greves), hierárquicas (punição, disciplina interna, processo de admissão), dos controles (ouvidoria, corregedoria), de qualificação e de gestão (inteligência, polícia comunitária), estão presentes em escala muito reduzida.

Debate consistente

Quando analisamos as ações policiais verificamos que elas estão centradas nas prisões de suspeitos, seguidas de investigações e operações de busca e/ou apreensões de várias naturezas. Esses resultados derrubam cabalmente o mito, tantas vezes repetido por policiais e autoridades de segurança, de que a mídia só dá destaque às coisas negativas sobre a polícia. Nada menos do que 585, de um total de 2.514 textos analisados, focalizam ações policiais bem-sucedidas: prisões, apreensões, resultados de investigações, mostrando a polícia em ação.

Na verdade, a pesquisa revela que as polícias têm nos jornais um excelente veículo de divulgação de suas ações e que predominam os feitos policiais, onde se imagina que predominam as críticas. Dificilmente outra instituição encarregada de políticas públicas (como por exemplo as da saúde, da educação, ou de saneamento) encontrará tanto espaço nos jornais para divulgar seu trabalho.

No entanto, é importante reconhecer que em alguns estados brasileiros, como o Rio de Janeiro, a mídia é uma fonte quase solitária de controle externo da ação de polícia, considerando que a ouvidoria é virtualmente inexistente e as corregedorias são extremamente frágeis.

Em síntese, pode-se concluir que há tendências simultâneas em curso. Por um lado, o volume de notícias sobre os temas da violência e da segurança publica é expressivo, indicando o reconhecimento da importância do assunto, especialmente nos jornais do Rio de Janeiro.

Tudo indica que a maioria dos jornais analisados deixou de praticar as coberturas meramente criminais típicas das antigas seções de polícia e passou a tratar de violência e de segurança pública. Além disso, nem mesmo os jornais de venda em banca se excedem no sensacionalismo ou na apelação à dureza contra o crime nos moldes clássicos e muito recorrentes no passado. São muito raras as notícias que defendem o endurecimento do tratamento com os criminosos ou a restrição de seus direitos (0,4%) e é pequeno (5,6%) o número de matérias que buscam enfatizar um sentimento de medo da sociedade frente ao fenômeno da violência urbana. Por fim, são desprezíveis os textos que deixam transparecer a idéia de que é possível fazer justiça com as próprias mãos (0,7%).

Por outro lado, a cobertura ainda é altamente dependente das fontes policiais, é extremamente factual, pouco contextualizada, com baixa presença de opiniões divergentes e pouquíssimos dados. Novas tendências se vislumbram, com um percentual não desprezível de textos enquadrados na perspectiva das políticas públicas, em particular quando o foco é o sistema penitenciário. Mas, do ponto de vista jornalístico, predomina em grande parte das matérias um tratamento superficial, que revela um investimento ainda pequeno das redações em retratar o setor com a importância que ele tem. Assim, vive-se uma contradição: enquanto a mídia denuncia a gravidade da crise da segurança pública no país, abdica, na maior parte do tempo, do papel de tomar a dianteira no debate sobre o tema — o que poderia motivar ações do Estado mais eficazes e abrangentes.

Uma das críticas mais comuns à polícia é que ela corre atrás do crime, sem capacidade de preveni-lo com planejamento e inteligência. A cobertura jornalística, mesmo dos melhores jornais do país, padece, em parte, dos mesmos problemas. Corre atrás da notícia do crime já ocorrido, ou das ações policiais já executadas, mas tem pouca iniciativa e usa timidamente sua enorme capacidade para pautar um debate público consistente sobre o setor.

(*) Coordenadoras da pesquisa Mídia e violência — Como os jornais retratam a violência e a segurança pública no Brasil, realizada pelo Centro de Estudos de Segurança e Cidadania (CESeC)

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