Entrevistador: Maurício Silva
A pesquisadora Silvia Ramos coordena o Observatório da Intervenção, uma iniciativa do Centro de Estudos de Segurança e Cidadania (CESeC) da Universidade Candido Mendes. O foco do CESeC, fundado em abril de 2000, é produzir pesquisa aplicada, com o objetivo de produzir conhecimento para estimular políticas públicas que ofereçam respostas fundamentadas na ciência.
Além da produção na área das Ciências Sociais, com experiência em temas como violência, juventude, segurança e diversidade, Silvia tem experiência prática no poder público. Ela fez parte da equipe organizada pelo antropólogo Luiz Eduardo Soares para conduzir a Secretaria de Segurança Pública do Rio de Janeiro entre 1999 e 2000. Após este período, na qual Silvia foi Subsecretária de Minorias e Diversidade, ela foi co-autora de um livro chamado ‘Elemento Suspeito: abordagem policial e discriminação na Cidade do Rio de Janeiro’, atuou em um projeto com o Afroreggae e publicou diversos artigos.
Assim que a intervenção foi decretada, o CESeC decidiu criar o Observatório da Intervenção para monitorar a operação por meio de pesquisa, com o intuito de produzir uma análise crítica da experiência. Além da equipe permanente formada por pesquisadores e profissionais, o Observatório conta também com um Conselho de Ativistas de diversas comunidades, uma Rede de Entidades Apoiadoras e Parceiros de Produção de Dados.
DCM: Em termos gerais, qual o balanço dos seis meses da intervenção?
Silvia Ramos: Nós analisamos a partir de três dimensões: números, fatos e modelo. Os números são muito ruins e preocupantes no que diz respeito aos crimes contra vida. Principalmente em relação à letalidade policial, na qual houve um crescimento assombroso. Quando se tem um governo perdido na área de Segurança pode-se considerar que lá na ponta os policiais estão se excedendo porque estão fora de controle.
Mas normalmente o que se tem é que as polícias sob comando são controladas e há uma queda desse indicador. Então, temos uma situação muito anômala e preocupante que é o fato de, sob intervenção federal, a política de segurança aparentemente vem sendo de radicalizar uma orientação, um problema histórico que é a de termos uma polícia que mata muito.
O Rio é um lugar traumatizado por chacinas como a de Vigário Geral, da Candelária e da Baixada, entre outros eventos com participação de forças policiais. O Rio é também um estado que tem problemas específicos de corrupção policial, e o combate a esta questão foi colocada com ênfase pelos comandantes militares no início da intervenção, mas pouco ou nada se avançou. Todo este contexto levava a crer que esses números seriam controlados.
Os fatos são também muito ruins. Temos o assassinato de Marielle, que produziu um trauma e uma preocupação grande de quando e se vai ser elucidado. Tivemos uma chacina na Rocinha, na qual morreram seis ou sete pessoas [o número é incerto] e não sabemos o nome de todas essas pessoas. Tampouco avançou-se na elucidação dessas mortes, nem sabemos se os policiais da Tropa de Choque envolvidos na ação serão punidos ou premiados. E houve um crime muito traumático que foi o assassinato do jovem Marcos Vinicius, durante uma operação policial no Complexo da Maré.
Por último, o modelo: o que verificamos é um discurso e uma lógica de guerra pra tratar da Segurança Pública. Todos os dias temos demonstrações que existe um modelo em curso, utilizado pelas Forças Armadas, que usa uma lógica de forças preparadas para a guerra, com uso de grandes operações e muitos soldados. Este modelo coloca muito em risco alguns princípios fundamentais da área de Segurança Pública, que não são mais discutidos pela áreas de Segurança no mundo inteiro, como o princípio de diminuir o número de confrontos e mortes.
Um exemplo é que o general responsável pela Segurança Pública, Richard Nunes, declarou que gostaria de alterar a classificação das mortes decorrentes por intervenção policial para mortes por legítima defesa. Na prática, ele não pode fazer isso pois não depende dele. Mas é uma declaração muito preocupante, pois não se resolve problemas de violência mudando a estatística. Uma autoridade de segurança falar que quer tentar mudar a classificação é algo muito grave.
O Exército é incompetente para lidar com questões de segurança pública? O Exército deveria ter esta competência?
O Exército é institucionalmente incompetente, não tem como atribuição a Segurança Pública, que é uma questão civil. A polícia tem atribuições completamente distintas das Forças Armadas. Em países que tem um modelo de segurança estruturado, sequer se pensa em generais comandando a segurança. Em muitos locais do mundo, a segurança é coordenada pela municipalidade, como em Nova York.
Algumas das principais polícias do mundo são municipais, não tem nada a ver com as Forças Armadas, que tem o mandato e as atribuições para lidar com as ameaças externas. É muito grave confundir e misturar mandatos e atribuições, algo que ocorre em ditaduras militares e que ocorreu em alguns países da América Central também.
Faltam recursos e experiência na área de inteligência e combate à corrupção ao Exército?
O Exército não tem expertise nem experiência para conduzir ações de inteligência policial e combate à corrupção, que são elementos fundamentais. As grandes ações com 2 mil homens e equipamentos de guerra têm um efeito limitado. Por exemplo, havia um acentuado número de roubos de carga na Pavuna e eles passaram a fazer operações militares na região.
Reprimiram a ação do crime que é aquele momento específico em que um criminoso sai da favela e rouba um caminhão. Mas, até onde se sabe, não conseguiram desarticular as quadrilhas de receptação de cargas. O que esta acontecendo (e a gente mostra isto no segundo artigo do relatório), é que está explodindo o roubo de cargas em regiões onde havia poucos roubos, como por exemplo na região do Tanguá. Sem o expertise da inteligência e da investigação, estão reprimindo com um método muito caro e insustentável, porque cada uma dessas operações feitas pelo mecanismo de GLO (Garantia da Lei e da Ordem) custa em média R$ 1,5 milhão, mas não é eficaz para desarticular as quadrilhas de receptação.
E é uma estratégia de pouca sustentabilidade pois essas megaoperações não podem ser mantidas por muito tempo. Esse exemplo de roubo carga é um exemplo de uso de força bruta com 2 mil homens, mas que não desarticula a estrutura, pois a receptação é formada por várias redes: o cigarro vai para um circuito, os alimentos para outro, os eletrodomésticos para outro e assim por diante.
A execução de Marielle, e a demora na resolução do crime, é um atestado do fracasso da intervenção?
Eu não considero como um fracasso da intervenção. A morte da Marielle é ainda uma grande incógnita e o que temos é uma quantidade de boatos e fofocas. Aparentemente, o problema é a baixa tradição e capacidade de elucidação de homicídios da Polícia Civil. Nos casos de Patrícia Acioli e de Amarildo, a intencionalidade era mais evidente, as investigações se iniciaram com já com um ponto de partida, isto é, já havia fortes indícios de grupos suspeitos.
Mas em casos como o da Marielle, que não se sabe a intencionalidade, é que se faz necessária grande expertise e capacidade de elucidação de homicídios. O general Braga Netto, comandante da intervenção, diz que vão elucidar até o final da intervenção, vamos aguardar.
Por que a intervenção não termina já, a despeito dos indicadores não serem positivos e de episódios traumáticos como tiros de helicópteros sobre favelas e a morte de inocentes, como o estudante Marcos Vinícius?
Em primeiro lugar, há um apoio da população a qualquer ajuda que venha de fora pra lidar com a criminalidade. Em parte de muitos setores da população existe uma sensação de que as Forças Armadas não estão dando conta, mas que sem eles seria e será pior, isto é, existe a ideia de que o Exército ir embora produziria uma sensação de desamparo.
Um segundo ponto importante é que, depois das eleições, a intervenção vai andar em outro ritmo, dependendo do resultados destas. O ritmo da intervenção terá influência daqueles que forem eleitos Presidente da República e Governador do Estado, podendo ocorrer uma retirada antecipada ou uma permanência prolongada, (mas não com o uso deste decreto de intervenção).
A permanência pode ser mantida ou intensificada com uma espécie de convênio, inclusive porque muito do que está sendo feito poderia ser realizado pelo mecanismo de GLO. É improvável que este modelo de intervenção, via decreto unilateral, será a opção que os novos mandatários queiram adotar.
Também sabemos que existem setores das Forças Armadas insatisfeitos, que acreditam que o Exército caiu em uma armadilha e que não deveriam ter respondido sim imediatamente a este pedido de assumirem a responsabilidade sobre toda a Segurança Pública. Segundo ouvimos, essa opinião é crescente dentro das Forças Armadas.
Por que o governo Temer não trata com total transparência os dados e gastos da intervenção?
Os generais parecem não se dar conta de que nestas posições, como Interventor Federal ou como Secretário de Segurança, eles deveriam se antecipar e dar maiores satisfações à população. No entanto, a transparência é baixíssima. Nas Forças Armadas o padrão geral de transparência é de não divulgar dados e informações, visto que atuam com informações classificadas até como secretas, ligadas a temas de defesa nacional. Já o Rio de Janeiro, a despeito de todos os problemas, tem um excelente sistema de dados produzido pelo Instituto de Segurança Pública, autarquia que tem um razoável grau de autonomia.
Mas o Exército tem esse padrão de não dar os resultados, não dar explicações. Quanto aos gastos, sabe-se muito pouco sobre eles. Com relação ao R$ 1,2 bi prometido pelo Governo Federal, o que acontece é que o Gabinete da Intervenção precisa requisitar recursos de um jeito que seja legal. Até agora, eles conseguiram requisitar e gastar cerca de 0,5% disso, por volta de R$ 60 milhões.
Declararam em entrevista que gastarão R$ 550 milhões naquilo que todo Secretário de Segurança gasta quando chega: armamento, coletes e viatura. Este dinheiro poderia fazer maior diferença se fosse gasto em outras áreas. Mas a gente não ouve anúncios de investimentos em áreas como inteligência, capacitação, formação de grupos de trabalho em parceria com a Polícia Federal ou na formação de gente especializada nas facções ou em modalidades de roubo como carga ou explosões de caixas eletrônicos.
Como em outras áreas da administração pública, quando se fala de investimentos em Segurança, onde e como investir são determinantes para obter resultados expressivos. Para contextualizar, o estado do Rio de Janeiro dispõe, no orçamento para o ano de 2018, de cerca de R$ 11,5 bilhões para a Segurança, mais do que o reservado para Educação (R$ 7,7 bi) e Saúde (R$ 6,6 bi). Trata-se do estado que tem o maior valor orçamentário para Segurança por habitante.
Por que das 66 ações estipuladas pelo Plano Estratégico, apenas 11 foram entregues?
A intervenção foi feita de forma apressada, baseada em uma decisão política pouco responsável. O Exército, que tem uma importância grande em algumas áreas do Brasil, está pagando o custo de ter aceitado entrar em uma empreitada muito relacionada a motivações políticas. Estamos a 4 meses do fim. Nesse sentido, a intervenção está sendo frustrante também para alguns integrantes das Forças Armadas, que fizeram o plano estratégico e previram que algumas ações já estariam realizadas.
Como a população das comunidades atingidas se sente e enxerga a intervenção?
Existe um duplo sentido. Nas regiões onde aumentaram os tiroteios e confrontos há uma grande angústia, frustração e uma percepção de desânimo: “o Exército veio para isso, para aumentar nossas dificuldades?”. Importante lembrarmos que no dia que é feita uma operação não tem aula, é muito trabalhoso entrar e sair da comunidade, as pessoas ficam deitadas no chão por causa de tiros, ou seja, há riscos e tudo fica complicado.
Por outro lado, existe outro sentimento também, em regiões como o morro Dona Marta ou na Baixada Fluminense: “Por que os militares não fazem nenhuma operação por aqui?”. É um duplo sentido: de abandono, nos locais onde a intervenção não chegou, ou de angústia e apreensão nos locais onde se intensificaram os tiroteios.
A Segurança Pública é vista e vivida dentro das comunidades de uma forma muito diferente das outras áreas da cidade – a polícia tem uma forma de atuação totalmente diferente. Eles só veem a polícia chegar atirando. É também onde se vive sob uma espécie de ditadura militar do tráfico de drogas ou das milícias. As pessoas vivem em uma situação muito angustiante permanentemente.
Segundo recente pesquisa Datafolha, vem caindo o apoio da população à intervenção. Como a senhora analisa este fenômeno? A população está se sentindo ou deve se sentir enganada? O Exército sai com a imagem atingida desta intervenção?
Havia uma expectativa muito alta e não é surpresa que o apoio caia depois de tudo que aconteceu: o caso Marielle, o caso Marcos Vinícius, entre outros e o aumento dos tiroteios na cidade – cuja causa não é apenas da intervenção do Exército, aumentaram também os tiroteios entre as facções e entre estas e as milícias. Surpreende que não tenha caído mais.
Não temos dados de que a população está se sentindo enganada. Acredito que o Exército ainda tem uma credibilidade grande junto à população, principalmente se comparado com as polícias, pois até o momento não vieram à tona denúncias de corrupção. A liderança do Exército também não pode ser acusada de estar se promovendo por interesses pessoais, pois eles não têm, por exemplo, casos como de delegados que podem usar o cargo para se candidatar. Eu acho que a intervenção tende a diminuir esse prestígio, eles devem sair com avaliações menos positivas daquela que tinham quando entraram.
Qual abordagem no combate à violência e a criminalidade que o Observatório da Intervenção defende? No que essa concepção difere da abordagem que está sendo colocada em prática pelo Exército?
Defendemos que a questão da violência tem solução e o que faz diferença é uma Política de Segurança que coloque, em primeiro lugar, a preservação de vidas: de policiais, cidadãos, suspeitos e criminosos. Não conhecemos nenhum caso no mundo em que a criminalidade foi reduzida de forma sustentável aumentando-se o número de mortes, isto não funciona.
Acreditamos nas pesquisas e em modelos que deram certo no mundo inteiro nos quais os representantes do Estado asseguram que as forças públicas vão proteger vida de todo mundo. E, portanto, a prioridade é reduzir os tiroteios, diminuir drasticamente os confrontos múltiplos.
Paralelamente investir fortemente para produzir um trabalho de inteligência e investigação para diversas questões como a entrada de armas longas e munições, as redes de receptação e venda de mercadorias roubadas, investigar financeiramente e atingir economicamente todos os elos que complementam essas redes criminosas. O combate à corrupção policial em sua estrutura também é fundamental. A intervenção poderia ter criado forças-tarefas com a Polícia Federal e avançado mais neste sentido.
É importante lembrarmos que esse tipo de abordagem não só é possível, como já foi feito. Há cerca de dez anos, a Polícia Civil montou um grupo antimilícia que desmontou milícias que tinham até vereadores em seus quadros. Colocou criminosos na cadeia com base em investigação, sem dar um tiro.
Os comandantes da intervenção estão querendo convencer o público que os crimes do patrimônio estão diminuindo e os criminosos estão morrendo. Este é um pensamento muito perigoso e pouco eficaz. Quem está sendo derrotado é a Política de Segurança errada, a política do confronto, com grandes operações que amplificam a ocorrência de tiroteios e, consequentemente, de mortes. No início da intervenção eles falaram tanto da questão da corrupção dentro da polícia e até agora não houve uma ação pública de inibição – e tudo indica que pouco ou quase nada se avançou nessa questão. Tudo isto em um contexto muito preocupante no qual as milícias vem se expandindo e se estabeleceram pela Zona Oeste e pela Baixada Fluminense.