As ações policiais com tiros a partir de helicóptero no Rio

HELICÓPTEROS DA POLÍCIA SOBREVOAM COMPLEXO DA MARÉ, EM 2014

Jovem de 14 anos foi morto por bala perdida em meio a operação no Complexo da Maré na quarta-feira (20) 

Na quarta-feira (20), policiais da Delegacia de Roubos e Furtos de Cargas iniciaram uma ação com apoio do Exército no Complexo da Maré, uma região administrativa da Zona Norte do Rio com mais de 16 núcleos, muitos deles comunidades pobres.

Segundo informações da Polícia Civil concedidas ao portal UOL, o objetivo era cumprir 23 mandados de prisão e checar informações de inteligência. A ação contou com um helicóptero da Polícia Civil e dois veículos blindados do Exército. A polícia afirma que houve resistência armada em dois imóveis, que resultaram em mortes.

Há sinais de que tiros partiram do helicóptero utilizado enquanto este sobrevoava uma área residencial. É o terceiro caso do tipo apenas em junho de 2018.

A ação conjunta entre a Polícia Civil, que é uma força de segurança do governo estadual, e o Exército, que faz parte das Forças Armadas e responde ao governo federal, ocorre em um contexto de intervenção na área de segurança no estado do Rio de Janeiro.

Ela teve início no dia 16 de fevereiro de 2018 por decreto do presidente Michel Temer, que instituiu o general Walter Souza Braga Netto como interventor federal. A intervenção vem sendo marcada por operações que fazem incursões armadas em comunidades pobres.

Na ação no Complexo da Maré, seis homens de entre 20 e 30 anos foram baleados e mortos pela polícia, que afirmou que eles eram “suspeitos”. Nenhum policial morreu. A polícia afirma que apreendeu munições e armas, incluindo quatro fuzis, drogas e ferramentas que poderiam ser usadas para arrombamento de caixas eletrônicos.

Um morador que não foi identificado disse ao jornal O Globo que o helicóptero usado na ação deu tiros à distância sobre a área residencial.

No Rio de Janeiro, o helicóptero recebe o apelido de “caveirão voador”. O portal UOL também foi informado por moradores que um helicóptero atirou contra a área residencial.

Marcos Vinicius da Silva, um adolescente de 14 anos, foi atingido na barriga por uma bala perdida durante a ação. Ele era aluno do Ciep (Centro Integrado de Educação Pública) Operário Vicente Mariano, mas não estava na escola quando foi atingido. Ele foi levado para uma Unidade de Pronto Atendimento, onde seu baço foi retirado.

O estudante foi internado em estado grave em um hospital no bairro da Penha, mas morreu durante a noite. A Polícia Civil afirmou que instaurou um inquérito para apurar o caso.

No dia seguinte à troca de tiros, moradores de duas das comunidades que compõem o Complexo da Maré, Vila do Pinheiro e Morro do Timbau, fizeram um protesto na Linha Amarela, chamando atenção para a morte de Marcos Vinicius.

Houve bloqueios a avenidas, e viaturas da Polícia Militar, inclusive do Batalhão de Choque, foram enviadas ao local. Policiais afirmaram ao jornal O Globo que manifestantes atiraram pedras contra eles. Os policiais responderam atirando, dando início a uma troca de tiros com parte dos manifestantes. Motoristas abandonaram seus carros e se protegeram atrás de muretas de concreto.

As operações policiais e os tiros com helicópteros

Segundo o Instituto de Segurança Pública, entre janeiro e maio de 2018 as delegacias de polícia fluminenses registraram 606 mortes pela polícia, um aumento de 25% (123 vítimas a mais) em comparação com mesmo período em 2017. Apenas no período de intervenção, entre março e maio de 2018, o ISP contabilizou 352 mortes decorrentes de ações policiais, um aumento de 17% em relação ao mesmo período do ano anterior, segundo informações do portal UOL.

O Observatório da Intervenção, formado por pesquisadores e entidades da sociedade civil, vem acompanhando a intervenção desde seu início, em fevereiro, e emitindo relatórios periodicamente. O documento mais recente, do dia 16 de junho de 2018, contabilizou 203 operações policiais até então, com uso de 100 mil agentes. No total, 56 pessoas foram mortas nessas ações.

O relatório também destaca dois outros eventos em que moradores denunciaram helicópteros de forças de segurança atirando em direção a comunidades. Uma ação ocorreu no dia 7 de junho na comunidade Cidade de Deus, com participação de 5.000 agentes. Outra, no dia 11 de junho, também no Complexo da Maré.

No dia da ação que levou à morte de Marcos Vinicius, a entidade questionou o uso do “caveirão voador” em uma publicação no Facebook. “Até em guerras a ONU condena as forças que colocam em risco a vida de civis. Como os generais da intervenção autorizam o caveirão voador atirando sobre a Maré?”.

No dia seguinte, o general Braga Netto, que comanda a intervenção, concedeu uma entrevista à agência Reuters em que afirma que há uma busca por evitar “danos colaterais”. O termo é em geral usado para guerras, e diz respeito à ocorrência de danos que não são o objetivo das forças militares, como a morte de civis ou destruição de monumentos.

“Para nós é inconcebível o dano colateral e um tiro que acerta uma criança ou terceiros. Nós só atiramos quando há certeza para outros”, disse. E rechaçou a comparação da violência no Rio de Janeiro com uma guerra.

Não vivemos uma guerra civil, isso é completamente diferente. Eu estive em área de conflito. O que temos é uma violência muito grande. Guerra é outra coisa. Se houvesse guerra, não ia ter cuidado com dano colateral que nós temos.”
Walter Souza Braga Netto General do Exército e interventor da segurança do Rio

O Nexo conversou com o coronel reformado da Polícia Militar do Rio de Janeiro Robson Rodrigues da Silva sobre como se dão as ações policiais em comunidades pobres no estado e sobre como essas mortes são encaradas.

Ele é mestre em Antropologia pela Universidade Federal Fluminense e foi comandante das UPPs (Unidades de Polícia Pacificadora) durante seus primeiros anos de implementação, a partir de 2008. Entre 2015 e 2016, foi chefe do Estado-Maior da Polícia Militar do Rio.

Quais são as regras para as ações policiais no Rio?

ROBSON RODRIGUES DA SILVA No sistema implementado no Brasil durante a ditadura militar, a Polícia Civil tem atribuição de investigar crimes, e a Polícia Militar de fazer o policiamento ostensivo para evitar crimes.

Quando realiza operações, como essa na Maré nesse sistema, que é ruim, a Polícia Civil alega que cumpre mandados de prisão, que é sua atribuição legal.

Mas quando faz ações que envolvem riscos, tem que levar em consideração alguns critérios, não só legalidade. Os suspeitos estão potencialmente e faticamente armados, e a polícia tem que aproveitar oportunidades para diminuir riscos e não causar mais instabilidade.

Por mais que a Polícia Civil tenha autonomia, ela precisa de um inquérito policial e aquiescência do Ministério Público e da Justiça para realizar um mandado de busca  e apreensão.

Toda ação da Polícia Civil tem à frente um responsável lá no Ministério Público, que tem que ser questionado no caso desse fracasso retumbante na Maré, que teve mortes e nenhuma prisão. A morte, execução, de criminosos não é indicador de sucesso.

As operações da Polícia Civil pelo menos podem ser justificadas pela legislação. Mas para realizar operações no Brasil, a Polícia Militar [que é responsável pelo policiamento ostensivo] usa um recurso absurdo, porque ela não tem competência nem atribuições para realizar persecuções penais.

Ela justifica isso dizendo que é uma operação constitucional para combate ao narcotráfico, “preservação da ordem pública”. Mas essa justificativa é um saco sem fundo, cabe tudo na preservação da ordem pública.

É uma coisa elástica, indefinida, é uma justificativa que servia para o tempo da ditadura, quando policiais tinham pleno poder, sem responsabilidade de prestação de contas.

Como você enxerga a lógica de tratar essas mortes como ‘danos colaterais’?

ROBSON RODRIGUES DA SILVA Se a polícia não consegue realizar uma investigação condizente, aproveitar uma oportunidade e prender o cara com o mínimo de riscos, quando ele estiver vulnerável, e os policiais e a população menos vulneráveis, ela não pode pegar o touro na unha.

Se você cumpre mandados de prisão nessas condições, os resultados são pífios. Não houve nenhuma prisão [na Maré], o resultado é matar, executar o criminoso. Isso não é indicador de sucesso.

[A ação na Maré] Foi um fracasso retumbante. É a repetição e insistência de uma aposta equivocada em confrontos bélicos militares.

Por mais que as pessoas reproduzam essa ideia, não estamos em uma guerra, em que se fala em “danos colaterais”. É um espaço do território nacional que tem ali uma população nacional, de pessoas que podem sofrer uma exclusão social, mas que estão dentro do ordenamento jurídico e têm que ser protegidas.

Na guerra, os objetivos são outros. Você tem um Estado e uma polícia que não conseguem contabilizar os riscos de ações tomadas com finalidade de proteção, e é provável que mortes ocorram.

Você tem vários indícios de que um helicóptero atirou para baixo, em uma região densamente povoada. O risco é muito grande, ainda mais voando, com instabilidade. É a catástrofe da sociedade e o fracasso do Estado como protetor dos direitos.

Quem deveria cobrar uma responsabilização contra abusos é o Ministério Público, que se faz omisso.

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