Suspeita de que policiais tenham participado da chacina de Osasco e Barueri deu força ao debate
O sangue ainda manchava as calçadas, as famílias choravam pelos 18 mortos na maior chacina do ano em São Paulo, o país tentava entender por que criminosos saíram disparando em ruas e bares de Osaco e Barueri na noite do dia 13.
Em meio a discursos eloquentes e promessas de providências pelas autoridades nas primeiras horas subsequentes, a frase dita pela costureira Rosângela Gonçalves revelou não o choque das comunidades atingidas pelo horror, mas a desilusão.
— Quando morre um policial, pode saber que em até 15 dias vai ter uma chacina. Nunca vai mudar, aqui não existe Justiça — sentenciou Rosângela, que três anos antes havia perdido o filho em outra chacina, e desta vez perdeu um amigo, em entrevista à Folha de S. Paulo.
Desde então, a linha de investigação que aponta para a participação de policiais militares e guardas civis na chacina, como vingança pela morte de dois colegas, só ganhou força. O caso se tornou um novo emblema da violência policial no país, acrescentando personagens a um enredo conhecido, em que frequentemente autoridade se confunde com o abuso da força. Pesquisa divulgada no mês passado revelou que 62% dos moradores de cidades com mais de 100 mil habitantes do país têm medo de sofrer agressão da PM, enquanto 53% deles têm medo da Polícia Civil. Realizado pelo Datafolha, a pedido do Fórum Brasileiro de Segurança Pública, o levantamento ouviu 1.307 pessoas em 84 municípios.
Mas o que explica tamanha violência policial? Para Renato Sérgio de Lima, vice-presidente do Fórum e professor da FGV São Paulo, essa resposta está diretamente relacionada a um sistema de segurança pública ineficiente, que mistura altas taxas de letalidade com uma “impunidade obscena”. Pesquisas indicam que a taxa de esclarecimento de homicídios no Brasil é de 8%, enquanto o tempo médio de julgamento de assassinatos é de oito anos e três meses. Num contexto de pouca investigação e punição, cresce o protagonismo da Polícia Militar, responsável pelas prisões em flagrante, dentro de um sistema em que as próprias corporações não conseguem garantir condições de vida adequadas a seus membros.
– Nesse quadro perverso nasce a ideia da cultura do confronto, num ato contínuo de matar e morrer. O policial é colocado como um herói vingador. O Brasil está longe de poder dizer que é civilizado no campo da segurança pública – observa Lima.
Para a cientista social Silvia Ramos, coordenadora do Centro de Estudos de Segurança e Cidadania da Universidade Cândido Mendes, do Rio de Janeiro, as execuções extrajudiciais remetem a práticas medievais: assim como os senhores feudais tinham seus vingadores para julgar e punir, hoje os agentes da lei executam suas próprias leis sob a crença de que são justas, e ao fazer justiça com as próprias mãos aumentam as injustiças. O desfecho trágico é que esse tipo de atitude não se reverte em menos mortes, como imagina quem pratica ou tolera crimes em nome da “limpeza social”.
– O excesso de violência por parte da polícia só estimula a violência dos criminosos, como no caso típico do Rio. O criminoso é pego e diz: “perdi, perdi”. E o policial responde: “perdeu nada, eu quero a sua alma”. Aí executam criminosos rendidos. Isso produz um ciclo crescente de vingança, ficam os dois lados disputando para ver quem é o mais cruel, o mais covarde. É uma sanha assassina, uma orgia de brutalidade – analisa Silvia.
Não é só em São Paulo e no Rio de Janeiro que as execuções extrajudiciais se repetem. Apenas em 2015, o Brasil registrou chacinas em outros seis Estados, com um total de 85 mortos – e apenas 23 responsáveis presos, segundo levantamento apresentado no programa Bom Dia Brasil de sexta-feira. Somando-se aos 56 mortos que se somam nas ocorrências de São Paulo, já são 141 brasileiros vítimas de chacina neste ano. O envolvimento de policiais é recorrente. Intitulado Você Matou Meu Filho!, um relatório divulgado no início deste mês pela Anistia Internacional aponta para o agravamento do problema. O estudo constata aumento de 39% no número de homicídios decorrentes de intervenção policial no Estado do Rio de Janeiro entre 2013 e 2014. Cerca de 80% dos 220 casos de homicídios cometidos por policiais em 2011 permaneciam em aberto até 2015 – e apenas um foi denunciado à Justiça pelo Ministério Público. Para Alexandre Ciconello, assessor de Direitos Humanos da Anistia Internacional, o baixo controle sobre as violações – tanto pelos frágeis controles internos (própria polícia) ou externo (que deveria ser feito pelo Ministério Público) – está por trás da repetição de tragédias associadas à atuação policial em todo o país.
– Não é só a polícia que mata. É também a falta de investigações dos homicídios, o Ministério Público que se omite e não cumpre seu papel, o Judiciário que é moroso. Existe uma estrutura que falha, permite que haja uma licença para matar – analisa Ciconello.
Essa licença não vem de hoje. Para o professor Rodrigo de Azevedo, coordenador do programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais da PUCRS, a estrutura defasada que mantém a divisão entre uma polícia que só patrulha e outra que só investiga está na origem dos problemas, ao criar dificuldades de integração e aumentar a precariedade do serviço. A legitimação de práticas violentas seria outra pendência histórica, como a falta de responsabilização a quem cometeu torturas durante a ditadura.
– Os torturadores se mantiveram nos seus cargos, então isso legitima esse tipo de prática. Não houve depuração na polícia. Isso indica um processo não acabado de democratização. A formação melhorou com a inclusão de direitos humanos nas academias, mas o conteúdo das aulas não é o mesmo que o currículo oculto na convivência com seus pares. Há omissão por parte do comando e ineficiência dos mecanismos de controle, que acabam gerando a dinâmica do nós contra eles – constata Azevedo.
De tão difundidos, os excessos acabam naturalizados, especialmente em contextos de periferia, onde a invisibilidade é regra. Até chegar a uma chacina, quantos abusos foram tolerados antes?
– A sociedade se autojustifica, dizendo: “ah, talvez fossem bandidos”. O mesmo policial que dá um tapa na cara do garoto na periferia, quando vai revistar jovens de classe média nos Jardins se comporta como um lorde. Começa com um chute aqui, um tapa na cara acolá, dali a pouco o policial coloca um pouco de droga para fazer um flagrante forjado, mais um pouco e se tem uma chacina – alerta a cientista social Silvia Ramos.