Disputas com armas de fogo dobram em áreas da Zona Oeste do Rio

A favela Chacrinha, na Praça Seca, local com o maior índice de disparos de armas de fogo este ano, de acordo com o Fogo Cruzado - Pedro Teixeira / Agência O Globo

Levantamento da plataforma digital Fogo Cruzado evidencia o crescimento do número de tiroteios na região. Especialistas atribuem aumento à política de segurança

RIO — Nos primeiros oito meses de 2018, o número de tiroteios na Área de Planejmento 4 (AP 4) da cidade do Rio de Janeiro, na qual a Barra está incluída, dobrou, se comparado ao mesmo período do ano passado. Os dados são do Fogo Cruzado, laboratório de dados sobre violência armada que disponibiliza informações por meio de um aplicativo e um mapa colaborativo. A AP4 abrange Barra, Recreio, Itanhangá, Jacarepaguá, Anil, Gardênia Azul, Cidade de Deus, Curicica, Freguesia, Jacarepaguá, Pechincha, Tanque, Taquara, Praça Seca, Camorim, Vargem Pequena, Vargem Grande e Vila Valqueire. Para quem mora na região ou a frequenta, os números comprovam o que se vê no dia a dia. Na visão dos especialistas, é claro que entre as causas do aumento dos confrontos está o início da intervenção federal, em fevereiro.

O laboratório de dados fez o levantamento a pedido do GLOBO-Barra, comparando os resultados de janeiro a agosto de 2017 e os de janeiro a agosto de 2018. Os números mostram que os confrontos armados foram de 302 no ano passado e 667 este ano, variação de 120,86%.

De acordo com a sociológa Maria Isabel Couto, gestora de dados do Fogo Cruzado, um dos objetivos da plataforma é ajudar a população a se proteger: de posse das informações, quem mora em áreas conflagradas ou passa por elas tem a chance, por exemplo, de traçar estratégias para sair de casa ou regressar.

— Nossos dados também podem servir de parâmetro para o poder público elaborar políticas de segurança melhores e mais qualificadas, que atendam às reais necessidades da população — frisa.

Ela observa que, este ano, estão sendo registrados mais tiroteios, mês a mês, em toda a cidade, principalmente em favelas e áreas mais pobres. E acredita que o aumento generalizado seja explicado pelo tipo de resposta que os órgãos públicos estão dando à crise de segurança:

— Depois da intervenção, houve aumento na incidência de tiros. Os órgãos públicos reagem com mais policiamento e armamento, mas isso não reduz a violência.

Pablo Nunes, pesquisador do Centro de Estudos de Segurança e Cidadania, vinculado à Universidade Candido Mendes, concorda. O grupo mantém, há seis meses, um projeto chamado Observatório da Intervenção, e, baseado nos dados coletados até agora, ele diz que os militares falham por não investirem no setor de inteligência:

— A AP 4 foi uma das regiões mais impactadas pela intervenção, principalmente a Praça Seca. Houve um aumento exponencial de confrontos de grupos do tráfico e da milícia. A intervenção foi incapaz de resolver essas questões de segurança, mesmo com todo o seu contingente, seu equipamento e as operações realizadas.Se a inteligência não for usada para desarticular as cadeias criminosas que operam nas favelas, o problema só migrará ou cessará por um momento e voltará com mais força.

Diretor da Associação Brasileira de Profissionais de Segurança, Vinícius Domingues Cavalcante, por sua vez, defende as medidas adotadas pelos interventores e atribui o aumento da violência à entrada de armas mais poderosas no estado:

— A criminalidade está bem armada e mais ousada. A capacidade bélica deles é superior à das forças de segurança. O fuzil, que antes só o chefe da quadrilha tinha, hoje qualquer bandido tem. Não concordo com esse discurso sobre a intervenção. Os criminosos estão mais equipados e guerreando entre si.

Cidade de Deus, que tinha a maior incidência de confrontos armados no ano passado e perdeu a UPP, agora está em segundo no ranking – Pedro Teixeira

PIORES ÍNDICES NA PRAÇA SECA E NA CIDADE DE DEUS

As duas áreas onde a violência é um elemento constante no dia a dia dos moradores foram também aquelas em que os confrontos armados mais cresceram de 2017 para 2018, segundo o Fogo Cruzado. Em 2017, foram 124 na Cidade de Deus e 71 na Praça Seca. Este ano, a Praça Seca recebeu mais operações das forças de segurança e passou a ter os índices mais altos registrados na plataforma digital: 230, contra 196 na Cidade de Deus. Em julho, a área ganhou uma Companhia Destacada, na qual foi empregada uma parte do efetivo da UPP da Cidade de Deus, que, por sua vez, foi extinta.

Entre os moradores, o medo é tal que nenhum dos ouvidos pelo GLOBO-Barra quis se identificar. X., da Cidade de Deus, afirma que desde o fim da UPP há menos tiroteios na comunidade.

— Havia muitos confrontos entre os traficantes e os policiais. Agora, isso acontece só de vez em quando. Os moradores estão se sentindo mais seguros, porque nossa vida ficou mais tranquila — diz ela.

Já Y., morador da Praça Seca, lamenta que os confrontos tenham se tornando mais frequentes em seu bairro:

— O clima aqui está cada vez mais pesado. Além dos traficantes, tem muita milícia. Há dias em que é tanto tiro que a gente não pode nem voltar para casa. Nunca pensei que fosse passar por essa situação, e agora me pergunto onde isso vai parar.

Também moradora da Praça Seca, W. costuma usar o aplicativo Fogo Cruzado para saber se pode voltar para casa. A jovem se diz insegura, com medo de se ver encurralada, no meio de um tiroteio, a qualquer instante.

— Moro perto do Morro São José Operário e da comunidade Bateau Mouche. Tenho a impressão de que o Exército só enxuga gelo, porque, quando eles vão embora, tudo volta ao que é — relata.

Bateau Mouche, na Praça Seca, registrou quase um tiroteio por dia de janeiro a agosto deste ano – Pedro Teixeira

Apesar de o Camorim não ter registrado nenhum disparo de arma de fogo este ano e apenas um no ano passado, o morador S. lamenta o clima de insegurança na cidade, o que faz com que esteja sempre alerta.

— A gente tem medo de sair à noite, de passar perto de algum lugar em que ocorram confrontos. Há vezes em que preciso até alterar a rota que faço para não passar no meio de um tiroteio — queixa-se.

Antropólogo, especialista em segurança pública e ex-oficial do Batalhão de Operações Especiais (Bope), Paulo Storani, morador de Jacarepaguá, compartilha da impressão de que os confrontos armados aumentaram na AP 4 e acredita que o problema seja consequência da crise financeira do estado:

— Os criminosos estão mais motivados. E, com o fim das UPPs, pode haver uma tentativa de domínio de certas comunidades por parte da milícia e de facções rivais à que domina uma área específica. Sem as UPPs, fica evidente que o estado perde sua força naquele local.

O especialista aprova a estratégia de realização de operações policiais regulares em áreas conflagradas.

—Quanto mais operações, melhor. Mas a polícia não tem efetivo suficiente, já que vive uma crise gravíssima. A desmobilização das UPPs vem da necessidade de aumentar o número de homens nos batalhões. Durante pelo menos seis anos, todos os policiais que se formavam iam para as UPPs. Chegou a um ponto em que havia viaturas, mas não homens para mobilizar. Gerenciar a massa falida é muito complicado — avalia Storani.

Os números de disparos na Taquara saltaram de 22 para 87 – Pedro Teixeira

Antropóloga e professora de Segurança Pública da UFF, Ana Paula Miranda vai na direção contrária, e atribui o aumento dos tiroteios à política de confrontos em vigor:

— Há décadas essa mesma estratégia falida é utilizada. Temos uma política de criminalização das drogas e de valorização dos tiroteios por parte de um governo que abandonou a segurança pública. Em ano eleitoral, isso piora. Eu e a professora Jacqueline Muniz temos um estudo em que falamos desse domínio armado para produzir currais eleitorais.

Procurado, o Gabinete de Intervenção Federal pediu que as demandas do GLOBO-Barra fossem enviadas à Secretaria de Estado de Segurança. Esta informou que não comentaria os dados apurados pelo Fogo Cruzado e que as estatísticas oficiais de criminalidade do Rio de Janeiro são provenientes dos registros de ocorrência realizados nas delegacias de Polícia Civil e divulgadas mensalmente pelo Instituto de Segurança Pública (ISP). A pasta acrescenta que estes dados orientam o planejamento estratégico para monitoramento e combate ao crime.

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