A intervenção militar e a estratégia de resolver o problema da segurança pública sob militarização: o que os dados dizem sobre a ocupação na Maré em 2014 e o que foi feito até agora no Rio de Janeiro.
No dia 16 de fevereiro de 2018, o presidente Michel Temer decretou intervenção federal e militar na segurança pública do estado do Rio. Oficialmente, o motivo foi o aumento da violência durante o último carnaval. Após o anúncio, organizações da sociedade civil, pesquisadores e defensores de direitos humanos manifestaram preocupação. O maior receio era de que a intervenção viesse contribuir ainda mais para consolidar um ambiente de tolerância a violações de direitos fundamentais, principalmente nas favelas e territórios populares.
Em entrevista ainda no fim de fevereiro passado, o interventor federal, general Walter Souza Braga Netto falou sobre a possibilidade de aplicação da medida em outros estados brasileiros: “O Rio de Janeiro é o laboratório para o Brasil”, formulou.
A afirmação hoje passa a sugerir um paralelo já que o Exército atuou no Complexo da Maré, em 2014. O conjunto de favelas às margens da Av. Brasil teria sido laboratório para o Rio? A julgar por parte do comando da intervenção na cidade, sim: dois militares de alta patente designados para a intervenção carioca participaram também da ocupação da Maré: o general Richard Fernandez Nunes (atual secretário estadual de Segurança) e o general Mauro Sinott Lopes (hoje coordenador do grupo de trabalho da intervenção).
A equipe do data_labe analisou os dados coletados pela Redes da Maré sobre a intervenção militar nas favelas do complexo a partir de 2014 para tentar entender semelhanças e diferenças com o que está acontecendo agora na cidade.
Entre 5 de abril de 2014 e 30 de junho de 2015, as Forças Armadas ocuparam a Maré. O objetivo de ambas as operações era, como à época se dizia, pacificar a região e estabelecer condições para a implantação de uma UPP – o que nunca aconteceu. Durante 15 meses, a área onde vivem 130 mil pessoas, recebeu mais de 23 mil militares de diversas regiões do país. O contingente variou entre 2 e 3 mil soldados, constantemente renovados, ocupando a favela em caráter contínuo e permanente.
Segundo o Anuário Brasileiro de Segurança Pública de 2017 , foram gastos R$ 529 milhões para a manutenção da tropa – R$ 35,3 milhões por mês, ou seja, R$ 1,18 milhão por dia.
Maré, 2014
Desde 2013, a Maré vivia momentos de tensão devido a presença ostensiva de diversos grupos civis armados, além dos desdobramentos da implantação das UPP’s em várias outras favelas da cidade. Era comum ouvir dos moradores que integrantes de facções aliadas migravam dos locais ocupados pela polícia para a Maré. Com o anúncio da implementação de uma UPP na área e a proximidade da Copa, as forças de segurança começavam a fazer mais operações, tornando os tiroteios mais frequentes.
Durante o período de 2013 e início de 2014, nove moradores foram assassinados em uma retaliação de policiais pela a morte de um sargento do BOPE, em outra incursão. O pouco espaço de tempo entre as entradas da polícia, com enfrentamento pontual e direto, fazia com que a sensação de medo entre moradores aumentasse cada dia mais.
O então governador Sérgio Cabral solicitou às autoridades federais que o Exército ocupasse o Complexo da Maré. O conjunto de favelas se estende por mais de 400 hectares, beirando e cobrindo as principais vias expressas da cidade. A medida foi expedida pela Presidência da República e regulamentada como operação de Garantia de Lei e da Ordem (GLO), dando poder de polícia aos militares, agora autorizados a fazerem patrulhamentos, revistas e prisões em flagrante. Em 2014 a ocupação militar foi anunciada, inclusive por Cabral, como uma ação de pacificação.
“Fomos provocados e intimidados nos últimos dois, três meses pelo poder paralelo em uma tentativa de enfraquecer uma política de segurança. É uma resposta que o povo do Rio de Janeiro e do Brasil reconhece”, declarou o então governador, quatro dias antes da ocupação. “É uma cidade que se integra a capital. Um dia histórico. Se a entrada da polícia já significou medo aos moradores, hoje significa a chegada da paz”, afirmou em coletiva de imprensa.
Embora na avaliação de Cabral a decisão tivesse apoio da população, entre os moradores da Maré a medida foi impopular. “A presença dos militares afetou o cotidiano de todos nós” – conta Vitor Santiago, 27, que vive em uma das favelas do conjunto – “Você era impossibilitado de ir ao mercado ou à padaria porque rolava tiroteio. Era uma insegurança, um abuso de autoridade muito grande ser revistado a cada cinco minutos”, relembra. “Eu não sofria as violações de direito que eu passei a sofrer antes dos soldados. Não é que fosse seguro antes deles [os militares] entrarem, mas era bem diferente, né?”, compara.
Intervenção federal, 2018
No fim de fevereiro de 2018, o governador do estado, Luiz Fernando Pezão, disse em entrevista que não tinha mais condições de impedir o crescimento da violência. O governo Temer, por sua vez, decretou a intervenção federal na área da Segurança Pública no Rio – fato inédito na história. Dessa vez o objetivo era, segundo as autoridades, “conter o grave comprometimento da ordem pública”.
Mas apesar de o aumento da violência no carnaval de 2018 ter sido a principal justificativa para a intervenção, dados do Instituto de Segurança Pública do Rio de Janeiro (ISP) não confirmam a alta de crimes violentos no período em comparação com anos anteriores.
Lidiane Malanquini, coordenadora do eixo de Segurança Pública da Redes da Maré, critica a forma como o Estado tem lidado com o tema no país. “No Brasil, e no Rio de Janeiro, não se construiu uma forma de fazer política de segurança pública que fuja do prisma da militarização. O país teve 13 GLOs só nos últimos 10 anos e agora temos uma intervenção federal. O Estado não consegue pensar segurança pública a partir da lógica cidadã, de prevenção e inteligência. A única resposta que se dá na é militarizar, armar mais, via confronto bélico, repressão da criminalidade”, analisa.
No dia 24 de maio de 2017, moradores e organizações da sociedade civil fizeram uma marcha contra a violência na Maré. O ato foi organizado pelo fórum “Basta de Violência! Outra Maré é possível!” e reuniu cerca de 5 mil pessoas que percorreram as principais ruas do complexo. Somente de janeiro a abril daquele ano, 18 pessoas morreram atingidas por disparos no local. O número supera as 17 mortes que ocorreram ao longo de 2016.
“Os dados dizem que não teve aumento da sensação de segurança dos moradores. O custo foi alto e não mudou em nada. Isso é grave. A expectativa que temos em relação a intervenção federal é novamente de uma ação de custo excessivo que não tem sustentabilidade. É como se as Forças Armadas fossem operar um milagre na segurança pública, numa crise que dura anos. Todo esse recurso poderia estar investido em uma reestruturação da Secretaria de Segurança Pública, das polícias, na polícia investigativa, que no Rio é bastante sucateada. Uma forma a dar sustentabilidade para políticas de segurança pública. Não ações pontuais”, sugere Lidiane.
O “basta!” da Marcha da Maré foi uma das respostas à sensação de insegurança que de certa forma reflete as estatísticas. Elas indicam um aumento da violência local durante o ano de 2017. Segundo o boletim Direito à Segurança Pública na Maré, publicado pela Redes, 42 pessoas foram mortas por armas de fogo entre janeiro e dezembro daquele ano. Os conflitos armados também marcaram a rotina local de forma particularmente prejudicial, impactando diretamente o dia a dia do morador.
A instalação de uma UPP após a retirada do Exército também não foi colocada em prática. E a ocupação pode ainda ter realçado a percepção de que as favelas – e não só as comunidades da Maré – são territórios de exceção.
É o que conta Buba Aguiar, 25, do coletivo Fala Acari. “A gente sentiu o impacto da intervenção em 2014. Apesar de o exército não ter ocupado Acari, a impressão que nos dá é que os policiais se sentiam mais à vontade para serem truculentos. Há relatos de casas invadidas, de fichamentos ilegais como os que estão fazendo agora na Vila Kennedy. Se você está em guerra, vale tudo. A polícia está encontrando na intervenção, legitimação para agir de forma mais violenta”, reflete.
De acordo com levantamento feito na cidade do Rio de Janeiro após a intervenção, pelo instituto Datafolha em parceria com o Fórum Brasileiro de Segurança Pública (FBSP), o medo da violência policial, de acusações infundadas ou de ter um filho preso injustamente é sempre maior entre moradores de favelas do que entre pessoas que vivem em outras partes da cidade.
Garantia da Lei e da Ordem (GLO) ou Intervenção Federal?
Segundo Wallace Corbo, professor de Direito Constitucional da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), a Garantia da Lei e da Ordem é um mecanismo previsto pelo artigo 142 da Constituição Federal para hipóteses em que os instrumentos regulares de garantia da segurança pública (polícias federal, civil e militar) se revelam insuficientes. “Neste contexto, a Constituição permite que qualquer poder da república – Executivo, Legislativo e Judiciário – requeira o emprego das Forças Armadas para desenvolver essas atividades”, explica.
Já a intervenção federal é um mecanismo previsto desde a Constituição de 1891, que funciona da seguinte maneira: apesar de a União e os Estados serem autônomos – ou seja, de um não se submeter ao outro -, existem algumas hipóteses em que a autonomia dos Estados pode ser afastada e a União passe a comandar todas ou parte das operações do ente federativo, como é o caso da segurança do Rio.
Tais hipóteses estão previstas no art. 34 da Constituição, e incluem, por exemplo, o risco à integridade nacional, invasão estrangeira, violação à dignidade humana entre outros. No caso do Rio de Janeiro, a intervenção foi decretada com base no “grave comprometimento da ordem pública”.
“Na prática, o que temos de um lado é a GLO, que permite ações das Forças Armadas em conjunto com as forças estaduais, que seguem sob o comando do Governo do Estado. De outro lado, temos a intervenção federal, que não se aplica só a casos envolvendo segurança pública, mas também a outros”, diferencia Corbo.
Mas se o uso de Garantias da Lei e da Ordem já é frequente no país, por quê desta vez o Governo optou por uma intervenção militar? Para a doutora em antropologia cultural pela UFRJ e pesquisadora de pós-doutorado do departamento de sociologia da USP, Carolina Christoph Grillo, é fato conhecido que as polícias locais são mais hábeis no combate ao crime comum urbano do que as forças federais. No entanto, diante da grave crise fiscal instaurada no Rio de Janeiro, o Estado encontra-se impossibilitado de aumentar os investimentos em segurança, sem antes quitar seus compromissos em atraso. “A intervenção possibilita que recursos federais sejam repassados diretamente para a pasta da segurança pública, em vez de pastas como saúde e educação, por exemplo, pois os recursos não passam pelo Governo do Estado”, explica.
Carolina ainda afirma que o caso da GLO de 2017 foi uma resposta à pressão exercida por entidades empresariais que se queixam da crescente insegurança patrimonial. “A incidência de roubos cresceu 83% ao longo dos últimos cinco anos no estado e 200% na categoria específica dos roubos de carga. Mas, apesar dos reforços das Forças Armadas, os roubos continuaram aumentando ao longo de 2017, demonstrando o total fracasso da GLO”, afirma.
Dois meses de intervenção federal: o que os dados dizem
Para acompanhar os impactos e resultados da intervenção, o Centro de Estudos de Segurança e Cidadania (Cesec), da Universidade Cândido Mendes (Ucam), fundou o Observatório da Intervenção. O projeto acompanha os reflexos da medida, levantando dados sobre as consequências da presença militar nas ruas, com foco em violações de direitos em favelas e periferias da capital.
Segundo o recém lançado relatório do Observatório, analisando os dois primeiros meses da ação, os tiroteios, balas perdidas e chacinas aumentaram. De 16 de fevereiro a 15 de abril foram registrados 1.502 disparos e tiroteios, que terminaram com 284 mortos e 193 feridos. No período pré-intervenção, entre 16 de dezembro e 15 de fevereiro, foram registrados 1.299 eventos similares. Isso representa um aumento de 12,9% de disparos nesse período. Os dados são da plataforma colaborativa Fogo Cruzado, que contabiliza tiroteios e violência armada no Rio.
A ferramenta computou ainda 12 chacinas, com 52 vítimas nesses dois meses. No mesmo período, em 2017, houve seis chacinas com 27 mortos. “A existência de vítimas múltiplas em episódios de intervenção policial e de confronto de facções criminosas pode estar se tornando uma marca deste novo momento do Rio sob intervenção, o que exigirá um monitoramento com foco nesse fenômeno”, destaca um dos trechos do relatório. Em 25 das 70 operações policiais no Rio sob intervenção houve mortes.
Os primeiros passos da intervenção consistiram na substituição dos chefes das polícias Militar e Civil e em ações em favelas e periferias. Principalmente o que se chama de “operações”, nos moldes das incursões realizadas pela PM, têm sido questionadas por entidades como OAB e Defensoria Pública, que receberam denúncias de violações. Uma das práticas abusivas que ganharam destaque é a de militares tirarem fotos das pessoas como forma de “fichá-las” informalmente. Outro ponto sobre o qual as entidades chamaram atenção foi o uso de mandados coletivos em favelas.
A Vila Kennedy foi a primeira comunidade a ser alvo das operações exclusivas das Forças Armadas, no dia 3 de março. Segundo Thais Alvarenga, 30, moradora do bairro, a percepção dos moradores em relação a presença do exército é marcada pela ambiguidade. “Eles tiram seus direitos dizendo obrigado e desejando bom dia”, afirma. Segundo Thais, ao mesmo tempo em que os moradores veem com bons olhos as incursões dos militares, por significar alguma presença do Estado ali, esta impressão não está livre dos receios a respeito de eventuais abusos de autoridade.
Tragédia anunciada
Na Maré, apenas 25% dos moradores aprovaram os resultados da ocupação de 2014. Já a aprovação popular da intervenção militar no Rio, é um tanto maior. Os dados do Ibope, em pesquisa encomendada pelo governo, demonstram que 83% dos cariocas veem a medida com bons olhos. Segundo Silvia Ramos, que assina o primeiro relatório do Observatório da Intervenção, a boa imagem da medida se dá pela descrença dos cariocas nas polícias e políticos locais em resolver os problemas que se agravam. “O fracasso das UPPs, a prisão do ex-governador e de políticos que administraram o Rio por dez anos e a falência financeira do Estado – juntamente com o medo quase universal de ser vítima da violência, 92% da população em pesquisa de março de 2018, – justificam este apoio”, destaca.
Já nos territórios populares, moradores acreditam que as forças civis corrompidas poderão perder o controle, e a ordem tomará conta das comunidades violentadas por mortes, extorsões e assaltos. “Este é outro risco do momento atual. Caso as condições de insegurança se agravem, possivelmente isso levará uma parte da população a apoiar políticas oficiais de suspensão de direitos”, conclui o texto.
Já Carolina Grillo alerta para as chances de inflexão no apoio popular. “Mesmo com o evidente reforço no policiamento ostensivo e o avassalador aumento das mortes decorrentes da ação policial, a incidência de crimes contra o patrimônio continua subindo. A intervenção não cumpre o que promete e é possível que a população perceba isso em breve”, observa.
Os paralelos entre a ocupação da Maré e a Intervenção podem ser vários. Os dados nos contam uma história sobre a maneira de fazer política de segurança pública através do confronto e da marginalização das camadas mais pobres da população, elegendo a favela como um território hostil e inimigo. Embora alguns personagens tenham mudado, a narrativa da paz militarizada não é novidade. A história se repete, resta saber se como tragédia ou como farsa.
Participaram desta reportagem: Clara Sacco, Eloi Leones, Fábio Silva, Fernanda Távora, Gilberto Vieira, Juliana Marques.
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