Narcocultura

Pesquisadores já demonstraram que a política de guerra às drogas baseada no excesso de confrontos coloca vidas em risco

Seis forças bélicas estão presentes na Rocinha: dois grupos em disputa pelo domínio do tráfico local, Bope, UPP, Exército e Choque. Pensar isso como normal ou admirável reação é vibrar com esse teatro de guerra, colocando a empatia com a vida de moradores em segundo plano. Não existe outro caminho para a paz que não passe pela mudança na política de drogas. Sem isso, o atual episódio pode acentuar a forte volta da narcocultura.

Julio Ludemir, escritor e um dos criadores da Feira Literária das Periferias (Flup), morador da favela Babilônia, com farta produção literária sobre o narcotráfico, narra pelas redes sociais importantes mudanças nas dinâmicas do tráfico com o ocaso das UPPs. Sempre que conversamos, aponta a existência de uma adaptação do tráfico, adquirindo aspectos de milícia. “O tráfico nas favelas virou franquia e, como tal, quem está à frente não tem mais uma relação íntima com moradores. Traz instabilidade. A gente não pode recorrer nem à polícia, nem ao famoso poder paralelo”, foi uma de suas falas atendendo meu pedido de interlocução.

A reflexão de Ludemir é mais um dos elementos do atual cenário. O negócio do tráfico ficou caro, a “boca” tá dura e precisa expandir os negócios, como o domínio da venda de gás. Uma situação que acirra a disputa pelo domínio do território, acentuada pela descoordenação da política de segurança que privilegia o confronto mais do que as ações de inteligência. Ativistas e pesquisadores já demonstraram várias vezes que a política de guerra às drogas baseada no excesso de encarceramento e de confrontos coloca vidas em risco, aumentando dinâmicas de corrupção para a chegada de drogas e armas. Expansão local e nacional são novas demandas de um tráfico que, com a distância dos chefes em presídios do Norte, fica suscetível a rupturas internas. Um cenário que pode ser mais tenso se a cultura do narcotráfico tiver a mesma força dos anos 1990.

Nos últimos dez anos, a narcocultura perdeu força em favelas. Como? Uma geração de jovens interagiu com a presença de mais escolas nas regiões e ingressou nas práticas de cultura que recebiam apoio e visibilidade. E também nas oportunidades de empreendedorismo e no engajamento de causas das favelas. Mas foi contraditório. Com as UPPs — ao mesmo tempo em que ocorriam pequenos avanços de mobilidade social — parte da polícia se comportava com práticas que rompiam direitos, e as políticas sociais eram marcadas pela fragilidade. Mesmo assim, esse cenário foi decisivo para a narcocultura ficar mais tímida na cidade. Não que essas possibilidades tenham sido plenamente realizadas, mas se tornaram alternativas presentes, contribuindo para que a imaginação da cidade sobre as favelas tivessem outras vozes. E são essas vozes que estão fazendo o melhor relato sobre os conflitos atuais. Ativistas frutos deste momento possuem corajosas reflexões a respeito.

Porém, a narcocultura se insinua novamente com força. A situação da Rocinha pode contribuir para isso, por envolver o tráfico de mais favelas. Páginas nas redes sociais que acompanham o mundo do tráfico receberam interações significativas nos últimos dias. A torcida pela vitória de um dos grupos, a ostentação de estar na guerra, fez o vocabulário do narcotráfico aparecer como marcador de identidades. Quem cresceu circulando na cidade nos anos 90 sabe o quanto o Rio foi marcado pela narcocultura. Até mesmo para andar nas ruas era preciso assumir um de seus avatares. O carioca boladão, por exemplo, aquele que está sempre atento, neurótico, pronto pra enfrentar, foi um ícone desse momento. Um tipo de “eu” que criava fronteiras para encontros numa cidade cheia de disputas de territórios.

O conflito na Rocinha e a resposta com o teatro de guerra abre espaço novamente para a influência desta cultura. O vídeo com um funk sobre o Rogério 157, que circula nas redes, gravado num recente baile na Maré, não é a prova de que o funk é narcocultura. Ao contrário, mostra como o gênero é um espaço popular que precisa ser ocupado por qualquer cultura que pretende se tornar forte na imaginação da cidade. Políticos já fizeram funk, polícia já fez funk, todos querem o funk. Pois bem, imagine uma cidade com governo fraco, tráfico com instabilidade interna e a narcocultura forte!

A narcocultura não terá fim enquanto as drogas forem tratadas como ilegais e não como questão de saúde pública. Não há outro caminho, é preciso encarar uma mudança na política de drogas. A lógica de guerra estimula a narcocultura e mantém a pobreza. Encarceramento e confrontos já foram perpetuados por décadas como único caminho. No que resultou? Mortes e instabilidade no cotidiano. Acesso a direitos sempre foi precário, apenas. Enquanto isso, a venda chega em regiões mais abastadas por delivery, em segurança. Regiões privilegiadas só reclamam quando acontece por perto. “Não é só não ter polícia, é não ter políticas de cultura, é não ter prefeito, governador, presidente, secretário de segurança”, pontua Silvia Ramos, uma das mais atuantes pesquisadoras na questão da segurança. Um vácuo que abre espaço para a cultura do narcotráfico. Alô, sociedade, é hora de encarar a realidade!

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