PM desafia STF e faz semana de operações invadindo casas e agredindo famílias no Rio

Comunidades do Fallet e Fogueteiro no Rio de Janeiro | Foto: Agência Brasil / Arquivo

Policiais do BOPE e do Choque desde a semana passada fazem incursões na comunidade Fallet e Fogueteiro. Organizações confirmam relatos de abusos; uma pessoa morreu

Duas semanas após a tentativa frustrada de invasão de membros do Comando Vermelho (CV) ao Complexo do São Carlos, atualmente controlada pelo Terceiro Comando Puro (TCP), a situação está longe de estar pacificada, especialmente para os moradores das comunidades do Fallet e do Fogueteiro.

Desde o dia 3 de setembro o Batalhão de Operações Especiais (BOPE) e o Batalhão de Polícia de Choque (CHOQUE) fazem incursões na localidade, que fica na mesma região que o Complexo do São Carlos, controlada pelo TCP. Os relatos de abuso policial se multiplicaram nos últimos dias, segundo a Ouvidoria da Defensoria Pública do Estado e outras entidades.

Em redes sociais e em aplicativos de conversa, há relatos de invasões de residências por parte dos agentes, agressões, impedimento da liberdade de ir e vir de moradores e de militantes de direitos humanos e até de uma morte, que teria ocorrido na madrugada de sexta-feira (4).

A Ponte recebeu diversos desses testemunhos sobre como está a vida diária na comunidade. A reportagem não pôde confirmar de forma independente tais relatos. Todos os autores tiveram sua identidade alterada e os relatos foram resumidos para maior concisão.

A moradora Marta, de 45 anos, foi a primeira a entrar em contato comentando sobre a situação no morro, que, segundo ela, está insuportável há dias. “A polícia está invadindo as casas dos moradores que saíram para trabalhar e roubando tudo lá dentro”.

Outra moradora, Nilza, confirmou a ação por parte dos agentes. Sua própria casa foi invadida pelos policiais sem qualquer tipo de autorização judicial. Seu temor era um só.

“Eles vão acabar com as minha coisas. Foi tão difícil conseguir tudo isso”, desabafou, explicando que teve que sair da própria casa com a filha para a casa da sogra, que mora perto. “Estamos acuados e amedrontados. Se você pega sua família e vai para um lugar seguro, para casa de um parente, você tem a sua casa arrombada e seus móveis e suas coisas quebradas”.

Para Pablo Nunes, Coordenador adjunto do Centro de Estudos de Segurança e Cidadania (CESeC), essa estratégia violadora de direitos é conhecida de outras ocupação de agentes das forças de segurança. Não à toa, já resultou em extensos relatórios anteriormente.

Pablo, porém, vê um componente político extra na equação. “A polícia vem de forma recorrente dando um recado bem claro ao Supremo Tribunal Federal (STF) com essas ações”, lembra o pesquisador, citando a liminar do ministro Edson Fachin que proíbe operações policiais em favelas do Rio de Janeiro durante a pandemia de coronavírus. “O cenário político atual traz muitas indefinições. Enquanto isso, a PMERJ continua usando desse artifício”.

Xavier, nascido e criado na comunidade há mais de 30 anos, diz que essas duas últimas semanas tem sido insuportáveis, até mais do que em outras ocasiões. Pai de uma criança pequena, ele aponta que essas incursões na comunidade pelo BOPE e outros agentes está impedindo o pouco de lazer que existe na comunidade.

“As crianças não têm mais direito ao lazer, jogar bola. É TODO dia esses caras aqui. A gente não pode ir em qualquer lugar que nos param e mandam voltar para casa”, reclama Xavier, relembrando que uma das poucas vezes que saiu com seu filho presenciou policiais espancando um menino no meio da rua porque este supostamente estaria com uma trouxa de maconha. “Meu filho teve que presenciar isso”.

Até mesmo o direito de ir e vir está comprometido. Segundo os moradores ouvidos pela reportagem, os caveirões do Choque e do BOPE têm ficado constantemente estacionados no início da Rua Eliseu Visconti, que é uma das principais entradas da comunidade.

“Com isso, dificulta-se imensamente que pessoas saiam pra fazer suas compras diárias”, diz Marta. “Tem lojistas de toda área ligando para a gente falando que não está dando para entregar nada. Até entregador de farmácia está com medo de subir”.

Quem é de fora também tem acesso à região dificultada. Um militante dos direitos humanos que não quis se identificar disse que foi impedido no último sábado de entrar na comunidade por policiais, que disseram entre eles: “Esse aí não é viciadinho não. É comunistinha que veio fazer reportagem, fazer defesa de vagabundo”.

Essas incursões estão inseridas em um contexto geopolítico próprio, onde operações policiais normalmente vêm ocorrendo em áreas tomadas pelo CV. Essa é a interpretação do sociólogo José Cláudio Souza Alves em entrevista recente à Ponte.

O professor destacou o fortalecimento de grupos milicianos ao longo dos anos e os negócios que vêm realizando com o TCP, que atualmente comanda o tráfico no Complexo do São Carlos . “Onde tem operações policiais, normalmente, são em áreas tomadas pelo CV e que passam a ter atuação das milícias ou do TCP, o que acaba dando no mesmo porque o TCP sempre teve uma relação de negociação de venda dessas áreas com a polícia e com a milícia”, explica.

A geopolítica das facções porém, não leva em consideração a micropolitica da vida cotidiana dos moradores. A integrante da Associação dos Moradores do Fallet, Kelly Martins desabafou. “Infelizmente a favela está carente de todo atendimento público e só ganha visibilidade quando acontecem essas coisas. Não é como se não tivéssemos demandas de anos em outros aspectos”.

Nesta terça (8/9) a Ouvidoria da Defensoria Pública do Rio de Janeiro, o Núcleo de Direitos Humanos da Defensoria (NUDEDH), a Comissão de Direitos Humanos da Assembleia Legislativa do Rio de Janeiro (CDH-ALERJ) e a Defensoria Pública da União estiveram no local, confirmando a situação de arbitrariedades.

O Ouvidor da Defensoria Pública do Rio de Janeiro, Guilherme Pimentel, disse que o órgão está fazendo atendimento individual às famílias atingidas para garantir assistência jurídica aos vitimados.

Mesmo assim, muitos moradores ainda têm medo de denunciar as arbitrariedades, como bem explicitou o morador Xavier. “Se me pegarem falando com você [repórter], eles [PMs] vão me bater muito”.

No caso da morte registrada no local, a Ponte foi ao velório da vítima, Fabrício Rodrigues dos Santos, de 20 anos, mas os familiares não quiseram dar mais detalhes do ocorrido. Segundo matéria do portal Bandnews FM, Fabrício foi atingido por um tiro no interior da comunidade e levado para o hospital, onde morreu.

Em nota, a PMERJ disse apenas que no dia não houve confronto entre agentes e criminosos no local. A instituição disse à reportagem que agentes do BOPE apreenderam um fuzil, um carregador e munições durante patrulhamento no último domingo.

Canal de denúncias pode ser usado pelos moradores

A população do Rio de Janeiro dispõe desde abril desse ano de um novo canal de denúncias para violações de direitos humanos e tirar dúvidas. O “Zap da Cidadania” é um sucessor espiritual do Defezap, já citado na Ponte anteriormente e recebe mensagens através do Whatsapp pelo número (21) 99670-1400.

O projeto foi desenvolvido e implementado pela CDH-ALERJ. Segundo Renata Souza, Deputada Estadual pelo PSOL e atual presidente da Comissão, o atendimento resguarda a identidade das vítimas em situações como a que tem ocorrido no Fallet e Fogueteiro.

“Todos os vídeos, áudios e fotos são checadas, todas as imagens são apuradas a fim de verificar a veracidade das informações e a materialidade daquela denúncia”.

Renata ainda adicionou que as informações serão encaminhadas posteriormente a outros órgãos de defesa, como o Ministério Público e a Defensoria.

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