Quando o direito à propriedade não vale absolutamente nada

“Rapaz, é terrível, viu? Eu vejo a minha ‘bichinha’ passando por mim todos os dias e não posso fazer nada. É como um pesadelo que não para nunca.” O diminutivo é usado pelo morador de uma favela da Zona Norte para se referir ao seu veículo, recentemente roubado por milicianos que dominam a área em que ele mora. Garantido no Brasil desde a primeira Constituição, em 1824, o direito à posse não se estende a todos os brasileiros.

Em regiões dominadas por traficantes de drogas ou milicianos, a lei que “vale” é outra — depende do capricho de quem manda.

Sob essa ditadura, moradores das áreas sob o jugo de bandidos só podem se lamentar, como faz o senhor que perdeu sua “preciosidade”, como ele chama o veículo. Os milicianos gostaram tanto da Kombi que a tomaram à força. E não houve como impedir.

— Eles foram ao meu trabalho, disseram que queriam a Kombi e pronto. Perdi. Não tinha como eu falar nada. O problema é que eu ainda estou pagando as prestações do financiamento e, pior: todos os dias, eles passam com ela aqui na porta da minha casa. Ela está sendo usada para o transporte deles aqui dentro e a favela é grande né? — conta o homem, sem a menor esperança de reaver seu bem.

Casos como este são corriqueiros nessas áreas e, embora sejam uma afronta à sociedade, não se restringem aos veículos. Os criminosos ainda se apropriam ilegalmente de casas e terrenos que pertencem aos moradores. Julita Lemgruber, diretora do Centro de Estudos de Segurança e Cidadania (Cesec), diz que a prática é mais comum entre milicianos do que entre traficantes de drogas:

— Nas áreas dominadas pelas milícias há um loteamento das propriedades da comunidade. Eles se apropriam de terrenos, fatiam e vendem, ficando com o lucro. É notório que isso acontece todos os dias nas comunidades da Zona Oeste, por exemplo.

Para a socióloga, problema ainda mais grave é o fato de que, nessas regiões, o direito de ir e vir, também garantido pela lei, não é respeitado.

— Para termos uma ideia do sofrimento dessas pessoas, é importante dizer que os moradores dessas comunidades recentemente ocupadas pela polícia e pelo Exército podem, enfim, convidar familiares para visitá-los, o que não ocorria devido à imposição dos criminosos — afirma Lemgruber.

O presidente da Ordem dos Advogados do Brasil do Rio (OAB-RJ), Wadih Damous, diz que qualquer desapropriação só pode ocorrer a partir de um processo legal:

— O direito à propriedade é garantido pela Constituição brasileira e não pode, jamais, ser ignorado.

Damous diz ainda que, devido à ausência do poder público, a criminalidade acaba exercendo os poderes Executivo, Legislativo e Judiciário, de forma arbitrária.

A responsabilidade disso tudo é de sucessivos governos, que assistiram de braços cruzados à instalação desses grupos. O direito à propriedade não pode ser violado, exceto através de processos legais, o que não é o caso. Os próprios criminosos só terão seus bens desapropriados (carros, mansões e terrenos) a partir de processos legais. É o que está ocorrendo agora.

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