Tribunal do Tráfico: falência do sistema de justiça criminal

O slêncio sobre o tribunal do tráfico na Seção de Cartas do GLOBO de hoje me leva a crer que estamos diante de uma tragédia ainda maior do que a denunciada pelo repórter Mauro Ventura, o primeiro jornalista brasileiro a assistir e registrar um “julgamento” feito por traficantes armados numa favela do Rio. Os defensores de violações de direitos humanos estão diante de um impasse. Certamente não querem ver o tráfico comandando ações de justiçamento, mas aparentemente também não desaprovam que ladrões sejam punidos com torturas e até a pena de morte, da qual o réu escapou graças à intervenção de um grupo de evangélicos neopentecostais. Como um em cada quatro brasileiros apóia a tortura como método de investigação policial, fica difícil condenarem as torturas praticadas contra o ladrãozinho que age na favela.

O que os traficantes fizeram com o ladrão é exatamente o mesmo que alguns cidadãos defendem que a polícia faça com os bandidos. E, é exatamente por isso que este blog é contra violações de direitos humanos. Um dos problemas é que a polícia ficará cada vez mais parecida com os atores que combate. Tão parecida que, às vezes, é muito difícil para um policial desses distingüir um bandido de um cidadão de bem, sobretudo se ele é pobre, preto e reside em favelas ou áreas pobres da cidade. É exatamente por isso que às vezes dá medo passar por uma patrulha da PM, em que os policiais nos encaram como se fôssemos réus, antecipadamente. Todos são culpados até que provem o contrário, parece ser um dos lemas de alguns policiais.

Tribunal do tráfico é um tema que permeia a cobertura de segurança pública no Rio, sobretudo nos últimos 20 anos. No Morro do Borel, na Tijucal ocorreu um dos casos mais célebres, em que ladrões receberam tiros nas mãos como castigo imposto pelos traficantes da favela, apenas com o ojetivo de manter a “área limpa” e distante da atenção da polícia. O Tráfico Varejista S.A. é uma empresa que tem baixo índice de inadimplência porque não tem sistema de cobrança feito por advogados, mas por matadores. O segundo aviso geralmente chega com homens armados que seqüestram o “inadimplente” e somem com o corpo em algum buraco desses, sem testemunhas.

No cinema, um dos julgamentos do tráfico que mais me impressionaram foi o que ocorre em “Cidade de Deus” – no qual a pena é cumprida por uma criança, como batismo na quadrilha – e em “Orfeu”, que a sentença foi dada diante de uma platéia totalmente favorável, mais ou menos como no caso denunciado pelo GLOBO. Mas Mauro Ventura foi o primeiro jornalista que teve sangue-frio para assistir a um julgamento de verdade, em que o pastor Marcos por pouco não perde sua moral diante da vagabundagem que conhece pelas bocas e xadrezes da cidade. A matéria, com foto e tudo, já é candidata a Prêmio Esso deste ano. É reportagem do mais alto quilate.

Quando o traficante com a arma engatilhada diz “quer ver como eu te mato na frente do pastor?” até eu gelei, lendo a reportagem no final do domingo, quando cheguei de Recife, onde cobri o encontro do Fórum Brasileiro de Segurança Pública.

Gelei porque pela minha cabeça passou tudo. Até mesmo a hipótese de que, se fosse executada a pena de morte, o pastor e seus fiéis também poderiam receber a mesma sentença. Mauro Ventura, meu amigo e filho do grande mestre Zuenir, que acompanhava os religiosos, poderia ter encontrado até o destino de Tim Lopes, o jornalista julgado, torturado e condenado à morte num simulacro de justiça como que o próprio Mauro viu. Identificado como repórter, ao final da sentença, Mauro foi obrigado pelos bandidos a não revelar onde fica esse tribunal que muita gente infelizmente vai aplaudir mas eu vos digo: é o mais cruel retrato da falência do nosso próprio sistema de justiça criminal. É preciso revermos todo o sistema, checarmos suas estrutruras, portas e janelas, antes que seja tarde demais.

De todos os especialistas que se pronunciam na continuação da matéria (suite, como chamamos no jargão das redações), hoje, fico com a explicação simples e sofistifcada da coordenadora do Cesec (Centro de Estudos de Segurança e Cidadania), Sílvia Ramos:

“A Justiça criminal tem quatro elos: a polícia que prende; o promotor, que indicia; a Justiça que julga; e o sistema penitenciário que executa a pena. Mas ali o traficante faz tudo e ainda tortura enquanto está julgando. É alvo medieval” (Silvia Ramos, pesquisadora de segurança pública e associada ao Fórum Brasileiro de Segurança Pública.

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