Objetivos gerais
- Mapear o crescimento das comunidades terapêuticas no Estado do Rio de Janeiro e avaliar os efeitos da sua consolidação como principal política pública para o tratamento de usuários de drogas, em comparação com outras abordagens e estratégias existentes na Rede de Atenção Psicossocial.
- Incidir no debate público mais amplo sobre política de drogas e, em especial, no das decisões legislativas sobre comunidades terapêuticas no estado.
Objetivos específicos
- Levantar dados relativos às CTs e outros equipamentos da Rede de Atenção Psicossocial junto às secretarias estadual e municipais de Saúde, com o objetivo de analisar os diferentes aportes de recursos;
- Mensurar a evolução da quantidade de CTs no estado do Rio de Janeiro nos últimos oito anos, abrangendo duas gestões estaduais e municipais;
- Acompanhar editais de financiamento de vagas em comunidades terapêuticas nos âmbitos federal, estadual e municipais para o Estado do Rio;
- Verificar, por meio do Ministério Público e da Defensoria Pública do estado, a frequência e as características das internações compulsórias e involuntárias;
- Acompanhar, no âmbito do poder legislativo estadual, o avanço da pauta favorável às comunidades terapêuticas nos últimos oito anos;
- Traçar o perfil das CTs identificadas pela pesquisa no Rio de Janeiro e das pessoas nelas internadas.
Metodologia
- Informações da Secretaria Estadual de Saúde acerca das comunidades terapêuticas e da Rede de Atenção Psicossocial do estado e do município do Rio serão obtidas por meio da Lei de Acesso à Informação (LAI) e de portais específicos: quantidade de recursos destinados às CTs nos últimos oito anos; finalidade dos recursos (infraestrutura, vagas, capacitações etc); quantidade de internações; duração das internações; quantidade de CTs inscritas; orçamento da Secretaria; custos de atendimentos e internações, entre outros pontos.
- Dados sobre internações voluntárias e compulsórias em CTs serão obtidos por LAI junto ao Ministério Público estadual e por meio de contatos com conselhos e órgãos de fiscalização acolhedores de denúncias.
- Informações sobre perfil socioeconômico dos internados, tempo de internação, número de internações anteriores em instituições similares, natureza da internação (voluntária ou não), existência de atividades religiosas (obrigatórias ou não), equipes que trabalham na instituição e outros dados serão coletadas por meio da aplicação de um formulário online às CTs identificadas.
- Na Assembleia Legislativa, serão levantados projetos de lei propostos e aprovados, audiências públicas, frentes parlamentares e outras informações relacionadas ao tema, por meio de articulação com mandatos envolvidos na discussão sobre comunidades terapêuticas no estado.
- Em função das limitações impostas pela pandemia de Covid-19 e até que seja possível realizar entrevistas presenciais, serão entrevistados por via remota profissionais de diversas áreas que atuem em comunidades terapêuticas, nos âmbitos estadual e municipal. Outros atores que a pesquisa procurará entrevistar serão internos ou ex-internos de CTs, profissionais dos CAPS-AD e parlamentares da Alerj, tanto favoráveis quanto desfavoráveis ao investimento público em comunidades terapêuticas.
Equipe
- Paula Napolião (coordenadora)
- Giulia de Castro e Jéssica Farias (pesquisadoras)
Pano de fundo e justificativa
1. A política de drogas e as comunidades terapêuticas no Brasil
Historicamente, como se sabe, estratégias as mais diversas foram concebidas para lidar com o uso problemático de drogas, ilícitas ou não. Entre elas, se destacam os chamados “tratamentos de alta exigência”, que têm como pré-condição a suspensão imediata do uso de drogas. A noção equivocada de que é possível construir um mundo livre de drogas embasa este tipo de política.[i]
É nesse contexto que o modelo de tratamento das chamadas comunidades terapêuticas ganha relevância e se populariza no Brasil, apresentado, atualmente, como a principal política pública do governo federal para o tratamento do uso de drogas, pautada na absoluta abstinência. Desde 2011, a partir de determinações do programa “Crack, é possível vencer”, o governo federal, por meio da Secretaria Nacional de Política sobre Drogas (Senad), financia efetivamente vagas em comunidades terapêuticas para “pessoas com transtornos decorrentes do uso de substâncias psicoativas”[ii], algo que já estava previsto na Lei de Drogas de 2006.
O crescimento vertiginoso desse modelo de tratamento desembocou na inclusão, em 2019, das comunidades terapêuticas como eixo central da Política Nacional sobre Drogas e em alterações significativas no Sistema Nacional de Políticas Públicas sobre Drogas, que passaram a preconizar a abstinência como tratamento central para o uso problemático de substâncias psicoativas. As implicações de tais ações estão claras na Nota Técnica[iii] do Ministério da Saúde, datada de 2019, que explicita oposição a formas de tratamento não abstêmias e defende a utilização de hospitais psiquiátricos e clínicas de reabilitação como principais tratamentos para o uso problemático de drogas.
É bom lembrar que o uso de drogas é um fenômeno complexo que envolve questões pessoais, sociais e econômicas e, por isso mesmo, as discussões sobre o tema não devem ser simplificadas. Ao longo da vida, pessoas podem ter os mais diversos padrões de uso e importa sobretudo dizer que nem todo uso de drogas é problemático, ou seja, nem todos terão sua rotina e qualidade de vida impactadas de forma drástica porque consomem esta ou aquela droga de forma regular.
Como, então, no caso do uso considerado problemático, imaginar que uma única abordagem de tratamento seja a forma adequada para todos os usuários? Por esse motivo, do ponto de vista de muitos especialistas, não cabe afirmar que um modelo seja mais eficaz que outro. Cada homem ou mulher que acaba por fazer uso problemático de drogas tem uma história singular e as abordagens para tratar de seu caso devem ser individualizadas e sempre orientadas pelo mais absoluto respeito aos direitos humanos.[iv]
Assim, pensar o tratamento para o uso problemático de drogas à luz dos pilares do Sistema Único de Saúde (SUS) é um pré-requisito fundamental. Isto porque os serviços ofertados necessitam ser universais e buscar a equidade; o que significa, na prática, estar disponível para todos e respeitar, simultaneamente, as singularidades e prover cuidado continuado. Em outras palavras: é necessário avaliar se as comunidades terapêuticas se constituíram, na prática, como a principal política pública para lidar com o uso problemático de drogas, uma vez que no âmbito discursivo governamental tal centralidade é explícita[v]. Cabe apontar que as comunidades terapêuticas, ao menos em teoria, se diferenciam das clínicas psiquiátricas por possuírem como pilares o trabalho, a disciplina e a espiritualidade[vi], combinado a saberes das áreas da psicologia, enfermagem e socioassistenciais; as clínicas, por outro lado, possuem como foco o atendimento médico. Na prática, tal diferenciação é um tanto quanto difusa: muitos centros de recuperação e clínicas utilizam algumas técnicas e características de CTs isoladamente, intitulando-se como tais, porém não têm os elementos essenciais nem as características necessárias para assim serem reconhecidas[vii].
Ainda que sejam numerosas as denúncias acerca de maus tratos e diversas violações de direitos humanos em comunidades terapêuticas pelo Brasil afora[viii], sabe-se que há grande diversidade de estabelecimentos e orientações. No entanto, nunca é demais insistir que essas instituições têm sido o principal objeto de investimento do governo federal na área especialmente após 2011[ix], o que cria a necessidade de observá-las e acompanhá-las muito de perto, com rigor e a seriedade que o tema exige.
Notas:
[i] United Nations Office on Drugs and Crime, 1998. Political declaration on countering the world drug problem. Disponível em https://www.unodc.org/unodc/en/commissions/CND/Political_Declarations/Political-Declarations_1998-Declaration.html>
[ii] DECRETO Nº 9.761, DE 11 DE ABRIL DE 2019. Aprova a Política Nacional sobre Drogas.
[iii] NOTA TÉCNICA Nº 11/2019-CGMAD/DAPES/SAS/MS Disponível em <http://www.mds.gov.br/webarquivos/arquivo/cuidados_prevencao_drogas/obid/legislacao/nota_saudemental.pdf>
[iv] TÓFOLI, LF. Políticas de drogas e saúde pública. Rev Sur. 2015; 12(21):1-4. Disponível em <https://cetadobserva.ufba.br/sites/cetadobserva.ufba.br/files/6_0.pdf>
[v] O ministro da Cidadania Osmar Terra afirmou, durante algumas falas públicas, que as comunidades terapêuticas ganharam um papel central no tratamento de dependentes químicos através da lei que modificou a Política Nacional Sobre Drogas, sancionada pelo presidente Jair Bolsonaro em junho de 2019. Além disso, o Ministério visa ampliar as 9 mil vagas em CTs já existentes para 20 mil em 2020. Ver Governo do Brasil, 2019. Ministério da Cidadania lança edital para seleção de comunidades terapêuticas. Disponível em <https://www.gov.br/pt-br/noticias/assistencia-social/2019/12/ministerio-da-cidadania-lanca-edital-para-selecao-de-comunidades-terapeuticas>
[vi] Um estudo do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea) de 2017 mostra que, de 2 mil comunidades terapêuticas do País, 82,2% são ligadas a alguma religião. A espiritualidade é a principal prática terapêutica (95,6%), mas 55% aplicam remédios nos internos. Ver IPEA. Nota Técnica: Perfil das Comunidades Terapêuticas no Brasil. 2017. Disponível em <http://www.ipea.gov.br/portal/images/stories/PDFs/nota_tecnica/20170418_nt21.pdf>
[vii] SENAD. Comunidades terapêuticas: histórico e regulamentação. Aberta, 2017. Disponível em < http://www.aberta.senad.gov.br/medias/original/201706/20170605-134703-001.pdf>
[viii] Conselho Federal de Psicologia. Relatório da Inspeção Nacional em Comunidades Terapêuticas- 2017 Brasília: C.F.P; 2018. e CRPSP. Conselho Regional de Psicologia – São Paulo. Dossiê: relatório de inspeção de comunidades terapêuticas para usuárias (os) de drogas no estado de São Paulo – mapeamento das violações dos direitos humanos. São Paulo: Conselho Regional de Psicologia; 2016.
[ix] O financiamento de tais instituições ocorre com base em determinações do plano “Crack, é possível vencer”, de 2011. Porém, é a partir de 2018 que o investimento nestes espaços cresce consideravelmente – aumentando de 6 mil vagas para 9 mil entre 2018 e 2019 e com planos de chegar a 20 mil vagas em 2020. Ver Estadão. Temer anuncia aumento de 50% nas vagas em comunidades para atendimento a dependentes químicos. 09 out 2018. e Governo do Brasil, 2019. Ministério da Cidadania lança edital para seleção de comunidades terapêuticas.
2. Questões da pesquisa
As Comunidades Terapêuticas são organizações da sociedade civil destinadas ao tratamento de pessoas que fazem uso problemático de drogas, sendo, em princípio, “de adesão e permanência voluntárias e de caráter residencial e transitório”[i]. Apesar de sua natureza privada e de não estarem incluídas no Sistema Único de Saúde (SUS)[ii], estão inscritas na Rede de Atenção Psicossocial (RAPS). Há incontáveis críticas sobre sua forma de atuação, incluindo a fragilidade das equipes de trabalho, o isolamento forçado dos pacientes em muitos casos, as mais diversas violações aos direitos dos mesmos (inclusive de sua liberdade de religião) e, até mesmo, indícios de tortura. O que se sabe é que a falta de fiscalização periódica e rotineira desses locais abre caminho para todo tipo de violação.
Para além das graves violações de direitos já apontadas em alguns documentos de inspeção[iii], é importante enfatizar que grande parte dessas instituições recebe algum tipo de recurso ou doação de órgãos públicos nas esferas municipal, estadual ou federal. E, vale lembrar, é prioritariamente por meio de recursos destinados a políticas sobre drogas que as comunidades terapêuticas acessam recursos federais.
Tal forma de financiamento foi contestada pelo Conselho Federal de Medicina e pela Associação Brasileira de Psiquiatria, por exemplo, com o argumento de que o investimento deixa de ser direcionado para a ampliação da rede pública de saúde. As entidades pontuaram também que muitas CTs substituem o tratamento médico por um programa terapêutico cuja eficácia não é comprovada cientificamente[iv]. O Conselho Federal de Psicologia também se manifestou contra o financiamento das CTs pelo SUS[v], alegando que o cuidado dos usuários de drogas deve ser feito em liberdade, em uma rede diversificada e territorializada de serviços, que poderia contar com as equipes de saúde mental na atenção básica, com os centros de atenção psicossocial – equipamentos com grande centralidade no tratamento do uso problemático dessas substâncias[vi]-, unidades de acolhimento, consultórios de rua, leitos em hospitais gerais para os quadros de intoxicação e/ou abstinência grave e outros. Esses serviços, estando dentro dos pressupostos da reforma psiquiátrica, buscam preservar e resgatar os laços e o apoio sociofamiliar e assegurar o caráter universal de oferta de serviços de saúde, um dos pilares do SUS[vii].
Isto posto, é de vital importância investigar como as comunidades terapêuticas cresceram e se espraiaram por todo o território nacional, especialmente no momento político em que vivemos. No entanto, no âmbito do projeto aqui proposto, o objetivo é examinar a situação das comunidades terapêuticas no estado do Rio de Janeiro.
O município do Rio de Janeiro, especificamente, tem adotado medidas que seguem na contramão das diretrizes da Reforma Psiquiátrica, instituída na forma da Lei 10.216/01[viii]. A gestão do prefeito Marcelo Crivella tem realizado sucessivos cortes na pasta da saúde, contribuindo para um cenário de instabilidade profissional e sucateamento de equipamentos do SUS. Em relação ao uso de drogas, a atual gestão tem reduzido verbas para a área de atenção psicossocial[ix] e alocado expressivos recursos para a criação de vagas em comunidades terapêuticas.[x]
Além disso, em 2 de agosto de 2019, Crivella assinou o decreto 46.314, que detalha as medidas de atendimento para usuários de drogas em situação de rua e também prevê a internação compulsória para alguns casos específicos. O decreto baseia-se em uma lei sancionada em junho do mesmo ano pelo presidente Jair Bolsonaro (Lei 13.840/19), alterando a Política Nacional sobre Drogas e sinalizando, como já apontado, uma mudança na orientação do tratamento do uso de drogas, priorizando a abstinência. Além disso, a tendência é o uso cada vez mais corriqueiro das internações involuntárias que, atualmente, podem ser solicitadas por um familiar ou servidor público da área da saúde.
Soma-se a isso a forte articulação política[xi] no âmbito da Assembleia Legislativa do Estado do Rio de Janeiro (ALERJ) a favor desse tipo de estratégia, através da proposição de uma série de projetos que objetivam fortalecer ainda mais as Comunidades Terapêuticas enquanto principal estratégia no tratamento do uso de drogas. Assim, considerando que tais instituições estão largamente presentes não só no Rio de Janeiro, mas em todo o território nacional, cabe investigarmos a dimensão do seu crescimento e de que forma ele ocorre – se acompanhado de investimentos na Rede de Atenção Psicossocial como um todo ou descolado dela.
Notas: