Os amigos de Aristênio começaram a morrer quando ele tinha 12 anos. Do grupo de meninos que cresceu com ele, no Parque União, dentro Complexo da Maré, o maior complexo de favelas do Rio de Janeiro, perdeu um, depois outro, até se dar conta que ele poderia ser o próximo. Um dia, jogando vídeo-game com outras crianças, viu o irmão ser atingido na perna por uma bala perdida da polícia militar. O tiro sobrou em uma disputa entre a PM e traficantes.
“Chegaram criminalizando a gente, um bando de moleque pobre, dizendo que a gente também era do tráfico. O que acontece muito”, lembra ele. “Eu tenho perdido amigos até hoje. A justificativa é sempre: ‘ah, mas era do tráfico’. Mentira. A gente perde muitas pessoas que não são. E mesmo se fosse… O Brasil não tem pena de morte, mas policial é juiz na rua”.
Aristênio Gomes chegou a Maré, com a família, quando tinha 8 anos. Os pais vinham de Patos, na Paraíba atrás de emprego e sustento. “Foi muita loucura, porque é uma realidade totalmente diferente. Passei a ver muito fuzil, a polícia entrando cotidianamente, tiroteios e coisas que eu nunca tinha experimentando”, afirma ele. “Ao mesmo tempo, foi uma riqueza enorme poder crescer ali. Me trouxe uma perspectiva de vida diferente da que eu teria. Cresci dentro daquela cultura, entre o povo preto, com o funk e isso faz parte da minha história”. Hoje, aos 26 anos, Aristênio Gomes é educador no Centro de Estudos e Ações Solidárias da Maré (Ceasm).
O trabalho o colocou entre os 15 jovens a integrar o Movimentos, projeto que reúne moradores de favelas do Rio, da Baixada Fluminense e de Salvador, no debate sobre “drogas, juventude e favela”, lançado no dia 02 de setembro. A ideia surgiu para dar vez e voz no debate sobre o assunto, para quem vive na favela – e que mais sofre com as consequências da guerra travada pelo Estado contra as drogas.
Durante um ano, os integrantes, selecionados entre lideranças e pessoas influentes em suas comunidades, participaram de seminários e oficinas com pesquisadores e especialistas, para entender a discussão em jogo. Na cartilha, disponível no site do projeto, além de um histórico sobre a proibição das drogas e os efeitos das leis, eles afirmam que uma nova política de drogas é necessária e urgente e se colocam como protagonistas no debate sobre ela. Não mais os coadjuvantes que colhem apenas consequências.
“Para nós, [a guerra às drogas] significa escolas fechadas, mudança na rotina, medo de sair de casa, preocupação extrema com o nosso bem-estar e o da nossa família. Em nome dessa guerra, o Estado justifica uma série de violações de direitos contra nós, jovens de favelas e periferias. Mas essa guerra não é nossa. Não fomos nós que declaramos a guerra às drogas. Não fomos nós que decidimos que algumas drogas seriam consideradas legais e outras, ilegais. Mas somos nós que morremos por conta dela. O consumo de drogas não diminuiu, o comércio ilegal não acabou. Ao contrário, a guerra às drogas trouxe mais violência, corrupção e desigualdade do que se poderia imaginar. Por conta dela, temos perdido a potência de uma geração de jovens – em sua maioria, negros – que, assassinados ou presos, acabam virando estatística”, diz o texto.
O Brasil registra média de 60 mil homicídios por ano. De cada 100 mortos, 71 são negros. Segundo um levantamento realizado pelo Núcleo de Estudos sobre a Violência da Universidade de São Paulo (NEV/USP), em parceria com o site G1 e o Fórum Brasileiro de Segurança Pública, embora não exista uma associação direta entre o tráfico e a violência, há uma relação entre a competição no mercado proibido da droga e violência. Entre a população carcerária masculina – 67% dela composta de negros – 28% estão presos por causa do tráfico. Para as mulheres, essa porcentagem salta para cerca de 70%.
“O que mais motivou a gente [a fazer esse projeto] foi a violência policial dentro das favelas, o que acontece dentro delas. Hoje, por exemplo, teve uma operação policial aqui na Maré e eu não pude sair trabalhar. Está tendo tiro até agora, cheio de policial na rua. Se eu sair agora, pode acontecer qualquer coisa”, diz Mayara Donaria, em entrevista por telefone ao Sul21.
Porque é diferente debater as drogas na favela
Mas o que muda no debate sobre drogas feito pela favela e para a favela? Segundo os jovens do Movimentos, muito.
“O nosso papel é discutir aqui dentro, porque as pessoas não entendem (…) Não é uma discussão que é presente. A gente sempre viu a violência acontecer e entender que era por causa disso. Sendo que a gente não faz o link de que, se fosse tratado melhor esse assunto, talvez essas coisas não aconteceriam”, explica Mayara, 20, que trabalha com produção cultural e comunicação comunitária, na Maré. “A gente vê vários dados de que a droga é mais consumida fora da favela. As pessoas que ganham dinheiro com isso não estão aqui. Aqui a gente não tem fábrica de arma, plantação de cocaína ou maconha. Somos o efeito colateral”.
Aristênio diz nunca ter se sentido incluso no debate sobre as drogas. Segundo ele, no começo, também tinha coisas a aprender para entender melhor parte dos conceitos e efeitos. A própria mãe, que assim como muitas das mães da favela viam o envolvimento com o tráfico como uma sentença de morte para os filhos, hoje entende o ponto de vista do filho.
“O que não se faz, como parte das propostas classe média, é que intelectuais e políticos que estão pensando na descriminalização, também não levam esse debate para a favela. Esse é um ponto. O segundo ponto é como faz para reverter todo o retrocesso, como faz para construir algo novo, como faz para pegar aquela juventude que está envolvida com [o tráfico] e cometeu crimes no âmbito do tráfico, mas que a partir do momento que a venda se torna legal, esse mercado vai para uma mão branca? Como a gente reaproveita e ressignifica isso, deixa o povo que já estava tomar conta e gerar empregos”, questiona.
Aristênio lembra ainda que, enquanto a vanguarda do discurso de legalização fora da favela é o direito ao corpo, ao uso recreativo e medicinal; na favela, o foco é assunto de polícia. “Você não tem um projeto de lei ou uma proposta que venha no sentido de dizer: reconhecemos que durante 40 anos, cometemos um crime em relação ao povo de favela e periferia e esse descaso gerou milhões de mazelas. Não se pensa isso. Não se pensa em como você tira o desmantelo que existe na favela, por conta de toda essa criminalização. Não se pensa em como o Estado pode reverter esses 40 anos de atraso”.
Resistência e experiência
Uma das idealizadoras do Movimentos, a professora de Sociologia do Centro de Estudos de Segurança e Cidadania (Cesec), da Universidade Cândido Mendes, Julita Lemgruber, também reconhece a “resistência” ao assunto dentro da favela. “Na favela, [a resistência em falar do debate] é muito aguda por essa percepção de que o problema é a droga. O problema na favela é o racismo, é a pobreza.O Brasil só recentemente começa a discutir a política de drogas pelo viés racial, o Iniciativa Negra surgiu há menos de dois anos”.
Julita, que já foi diretora do sistema prisional do Rio e ouvidora da polícia, afirma que o grupo preparado dentro do projeto “tem legitimidade e autoridade para falar de políticas de drogas, pelo fato de morarem na favela, de serem vítimas de uma política equivocada, que escolheu o enfrentamento violento ao varejo das drogas como política de segurança”.
“A singularidade desse material é essa. Esse é um material produzido pela favela e para a favela. Não é produzido por especialistas de classe média branca, que se julga bem informada, falando sobre políticas de drogas”, defende.
Para ela, a crise de segurança pública vivida pelo Rio de Janeiro – que inclui a presença ostensiva das Forças Armadas em favelas como a Rocinha – deixou a verdade sobre o fracasso das políticas de combate nuas. “Nunca esteve tão evidente que esse enfrentamento violento ao varejo de drogas fracassou. Hoje esse é o maior exemplo de uma política insana e míope (…) Eu estou convencida de que a favela precisa amadurecer esse debate. Precisa desafiar a lógica de que a luta contra o tráfico de drogas justifica a violência policial. É essa lógica que os jovens do Movimentos querem desafiar”.
Além do ativismo e de serem ativos em suas comunidades, os jovens do projeto carregam outra coisa em comum: todos viram alguém morrer. Para Mayara, foi o tio, irmão da mãe, na porta de casa. “É muito comum você ver tias limpando a calçada de sangue. E a gente tem que normalizar tudo isso. O papel do movimento é não achar isso normal. É criticar. Isso não deveria acontecer, vamos mudar, mas como é que muda?”, questiona ela.
Por enquanto, com construção de diálogo. O Movimentos se organiza em rodas semanais de conversa, nas favelas onde moram os jovens que integram o projeto, e no Centro da Universidade Cândido Mendes. Para o final do ano, o grupo já tem um encontro nacional, que irá reunir jovens de todo o Brasil, engajados em suas comunidades e no debate das drogas, no Rio de Janeiro. O objetivo é que o debate através do projeto se nacionalize.
Além de uma revisão ao enfrentamento sem resultados, o Movimentos também busca pautar alternativas para pessoas que sobreviviam como mão-de-obra do tráfico, um modelo de negócios que integre moradores ao mercado e reconhecimento por quem morreu na guerra travada contra a favela.
“A favela se adapta à violência. Se está dando tiro, tem que fechar mais cedo, deixar de fazer certa coisa, enfim. Eu acho que a legalização é um assunto muito novo, mas a favela tem muitas igrejas que já trabalham com usuários de drogas e entendem que matar e prender não é a solução. É um público com o qual a gente quer trabalhar junto e conversar. Eles atendem essas pessoas, mas não falam sobre a legalização, por questão de doutrina”, afirma Mayara.