Interrupção de operações policiais no auge da pandemia mostrou que outra política de segurança é possível

Ilustração: Victória Sacagami/Gênero e Número

Durante os meses em que cumpriram decisão do Supremo Tribunal Federal de interromper operações, polícias do Rio mataram até 80% menos; perfil das vítimas continua sendo negros e pobres

Aausência de uma política consistente de prevenção e combate à covid-19 no Brasil jogou luz sobre a expressão “mortes evitáveis”. No contexto da doença, seriam aquelas que aconteceram quando era possível evitar o contágio, com melhores políticas de incentivo ao isolamento, ou que aconteceram devido à sobrecarga do sistema de saúde. Mas ainda que as mortes causadas pelo novo coronavírus sejam o assunto principal do ano, as mortes evitáveis no contexto da Segurança Pública também merecem atenção: até novembro, só no estado do Rio de Janeiro, foram 1.160 mortos pelas polícias.

Ainda não há dados de raça para as vítimas de 2020, mas os mais recentes, de 2019, mostram que no Rio de Janeiro pessoas negras são 86% daquelas mortas pela polícia. Os dados são da Rede de Observatórios da Segurança e consideram os cinco estados monitorados pela rede. Na Bahia, a proporção de negros entre os mortos chega a 97%. No Ceará, 87%, e em Pernambuco, 93%. Em São Paulo, que tem menor proporção entre os estados monitorados, negros são 63% dos mortos.

“É uma enorme quantidade de mortes totalmente evitáveis, de pessoas que só morreram porque eram jovens negros de favelas e periferias, e porque a corporação policial aceita, tolera e, de certa forma, sanciona esse tipo de estratégia: a polícia atira para matar se do outro lado tiver um jovem negro da favela”, aponta Silvia Ramos, pesquisadora de Segurança Pública no Cesec (Centro de Estudos de Segurança e Cidadania) e coordenadora geral da Rede.

 Negros são 86% dos mortos pelas polícias

Dados referentes a cinco estados mostram padrão de atuação; em 2020, STF interviu para diminuir letalidade no Rio

Mortos pela polícia em 2019 (em%)

A dor de quem fica

“Levanta, preto! A tia tá aqui.” Foi esta uma das frases mais marcantes entre as várias gritadas no velório de Jhordan Luiz Natividade, de 17 anos, em 14 de dezembro deste ano. Jhordan e Edson Arguinez Júnior, de 20 anos, foram assassinados por policiais militares em Belford Roxo, na Baixada Fluminense. Mais duas mortes evitáveis.

Os jovens deixaram suas famílias para entrarem nas estatísticas em que as vítimas são principalmente jovens negros e pobres, mas com impacto na vida de muitas mulheres. São elas que geralmente estampam as capas de jornais, repetidamente, chorando a perda. São mães, tias, avós, primas e irmãs.

No caso de Jhordan e Edson, a dinâmica das mortes foi brutal: eles estavam em uma moto quando policiais militares atiraram à queima-roupa, sem pedir sequer para que descessem do veículo. No chão, foram chutados e apanharam com o cano do fuzil. Depois da abordagem, foram jogados na traseira da viatura.

Seus corpos foram encontrados horas depois, com mais marcas de tiros e violência. O maxilar de Jhordan, por exemplo, estava quebrado. O cabo Júlio César Ferreira dos Santos e o soldado Jorge Luiz Custódio da Costa foram presos após familiares das vítimas levarem os vídeos da abordagem para uma delegacia.

“O Edson era um filho carinhoso, gentil, educado. Ele não fez nada para justificar essa crueldade que fizeram com ele. Na cabeça dos PMs, dois pretos não podem andar em uma moto sem serem criminosos”, disse à época Renata, mãe de Edson.

No enterro dos rapazes, Alecssandra, mãe de Jhordan, lamentou não estar no lugar do filho: “Perdoa a tua mãe por eu não estar sentindo a sua dor”.

O que vemos como solução é reduzir o poder, a força e o armamento da polícia. É reduzir essas estratégias de policiamento que ‘preventivamente’ atacam garotos negros passando na rua de moto, a pé ou dentro de suas comunidades

Silvia Ramos, pesquisadora de Segurança Pública no Cesec

Silvia Ramos, que pesquisa Segurança Pública há mais de 20 anos, diz que cenas, enterros e mortes como a Jhordan e Edson são constantes, e os dados comprovam: são mais de 1.500 por ano somente no Rio de Janeiro. Mas apesar de sempre vermos mães chorando sobre caixões, nunca há um pedido de desculpas.

“Nunca vi um policial pedir desculpas a uma mãe de favela. Mas isso não é só do caráter do policial, é estratégia da corporação. Eles são instruídos a mentirem, a nunca admitirem que se excederam no uso da força e que poderiam não ter matado”, analisa Ramos.

Intervenção

Para impedir casos como os dos meninos de Belford Roxo é que, em junho de 2020, houve uma proibição do Supremo Tribunal Federal para que as polícias do Rio de Janeiro interrompessem as operações policiais em favelas de todo o estado. O estopim para a decisão do ministro Edson Fachin, com base na ADPF 635, foi a morte do menino João Pedro, de 14 anos, dentro da própria casa em São Gonçalo, na região metropolitana do estado, com tiros nas costas. Outra morte evitável.

Na decisão, Fachin afirmou que, via de regra, “os agentes de Estado devem justificar todas as circunstâncias que os levaram ao emprego da arma e devem demonstrar que a exceção de seu emprego está plenamente justificada pelas circunstâncias do caso”. Mas não é o que acontece. Por isso, o ministro suspendeu as operações durante a pandemia de covid-19, exceto em casos especiais, que deveriam ser comunicados ao Ministério Público.

A decisão funcionou: em maio, os mortos em decorrência de intervenção policial foram 130. Em junho, 34. Em junho de 2019, ocorreram 153 mortes nessas circunstâncias, 77% a mais. A diminuição na quantidade de mortes em 2020 se manteve até setembro, quando foram registradas 52. Mas em outubro, com a pandemia ainda em curso, os índices voltaram à normalidade sangrenta: 145 pessoas morreram em confrontos com a polícia.

Para Ramos, a decisão do STF expressou como a alta letalidade policial não tem nenhuma justificativa.

“O que vimos é que quando a polícia quer parar de matar e reduzir os efeitos letais, consegue. Esse sobe e desce das mortes pela polícia não tem nada a ver com as dinâmicas de criminalidade: nos cinco meses em que a polícia matou menos do que normalmente, os crimes contra o patrimônio e a vida não aumentaram”, afirma a pesquisadora.

Crianças

A política letal das polícias também atinge as crianças ainda mais jovens que João Pedro. Até o início de dezembro, 2020 registrou ao menos 22 crianças de até 12 anos baleadas no Rio de Janeiro. Oito dessas morreram, de acordo com o aplicativo Fogo Cruzado. As mais recentes foram Emily Victória, de 4 anos, e Rebeca Beatriz, de 7 anos. Elas brincavam na porta de casa, em Duque de Caxias, na região metropolitana do Rio, quando PMs tentaram abordar uma moto e houve disparos.

“Eles só sabem fazer isso, dar tiro. Olhou, dá tiro”, disse Ana Lúcia Silva Moreira, mãe de Emily.

O laudo balístico foi inconclusivo, sem poder afirmar se as balas saíram dos fuzis dos policiais, mas o policiamento ostensivo e a naturalidade com que tiros são dados em áreas residenciais, com crianças, chama a atenção.

“A polícia não age desse jeito nos bairros abastados de maioria branca. É uma estratégia de segurança pública racista, voltada para jovens negros da favela, que são vistas reiteradas vezes como o local do mal e onde só tem bandidos”, analisa Silvia Ramos.

Para 2021, não há qualquer proposta de melhorias. O governador em exercício do Rio de Janeiro, Cláudio Castro, decretou que reduzir o número de mortos pela polícia fará parte do plano de metas que premiará agentes de segurança.

Mas para Silvia Ramos, a real mudança só acontecerá quando o investimento em educação, cultura e lazer forem altos. Atualmente, de acordo com dados da Rede, a Segurança do Rio custa R$ 21 bilhões, entre gastos com estrutura e profissionais da ativa e aposentados.

“Esse dinheiro não serve para melhorar a polícia, mas para mais armas, mais munições, mais viaturas, mais coletes, mais policiais na rua fazendo a mesma coisa. O que vemos como solução é reduzir o poder, a força e o armamento da polícia. É reduzir essas estratégias de policiamento que ‘preventivamente’ atacam garotos negros passando na rua de moto, a pé ou dentro de suas comunidades”.

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