E então dezembro trouxe um fato que pode ser considerado um laço de fita nos piores acontecimentos de 2016 no campo da segurança pública: o ministro da Justiça anunciou para um grupo de especialistas que em vez de um esperado e já tardio Pacto Nacional de Redução de Homicídios, o ministério estaria preparando um Plano Nacional de Segurança inspirado no objetivo de erradicar as drogas, no aumento de policiais, em mais recursos para a repressão e menos para melhorar as prisões. Entre outras medidas, o plano teria por objetivo exterminar a maconha no Brasil a partir de convênios com o Paraguai. Faltando cinco dias para o recesso de Natal, o presidente Michel Temer baixou medida provisória que transfere parte de recursos destinados ao Funpen (Fundo Penitenciário Nacional), verba prevista para construir e reformar unidades prisionais, para a segurança pública. A MP confirma que as intenções do ministro têm apoio no governo.
Pasmo e incredulidade são expressões fracas para descrever a reação de quem acompanha a área há tempos. Não há registros, desde a redemocratização iniciada no governo Sarney em 1985 – à exceção talvez de um ministro no governo Collor – de Ministério da Justiça tão retrógrado e assumidamente reacionário em termos de medidas e discursos sobre segurança e direitos. O estilo abertamente policialesco, a obsessão em entregar para as polícias fuzis recuperados de criminosos, o discurso da guerra às drogas, a ausência de medidas para conter a violência policial e de referências à matança de jovens negros das periferias que, como país, mantemos há duas décadas, assusta. Em relação às 58.467 mortes violentas, aos 584.361 encarcerados, um terço deles (36%) sem julgamento, às 3.345 pessoas mortas pelas polícias e aos 393 policiais mortos, só em 2015, segundo o Anuário Brasileiro de Segurança Pública de 2016, os planos do MJ prometem ser econômicos.
De todo modo, no contexto de espantos como Brexit, Trump ou o “não” ao acordo de Paz da Colômbia no referendo de outubro, as peripécias do Ministério de Justiça não deveriam causar tanta perplexidade. Se cada fenômeno tem características distintas, além de consequências incomparáveis, os retrocessos na área da segurança pública no Brasil são de certa maneira consistentes com a velha peleja da segurança com os direitos humanos.
Nos estados, a manutenção consistentemente alta de taxas de mortes violentas foi combinada, em 2016, com o surgimento de ondas de crescimento de criminalidade violenta (crimes contra a vida e crimes contra o patrimônio como assaltos e roubos). Em estados como Rio Grande do Sul, Rio Grande do Norte e Rio de Janeiro, as crises financeiras e políticas fizeram surgir um personagem novo e um tanto assustador, um profissional de segurança radicalizado na defesa de salários e carreiras, invadindo Assembleias Legislativas, pichando muros, ameaçando cruzar os braços e instalar o caos nas ruas e nas cadeias.
No Rio de Janeiro, além disso, o fim dos Jogos Olímpicos combinou-se com a crise já antecipada do projeto das UPPs e ressurgiu com força a disputa armada por territórios entre facções do tráfico e com as milícias. As polícias demonstraram que não usaram o longo período de baixas taxas de violência letal para acumular expertise em inteligência ou capacidade de investigação e vêm demonstrando total incapacidade de antecipação aos ataques das facções e aos grupos de milícias. Os tiroteios diários voltaram às favelas. As mortes de moradores, criminosos, e policiais se multiplicaram.
Em alguns lugares do Brasil comandantes de polícia passaram a apoiar abertamente ações policiais violentas – tiroteios com morte de criminosos – como forma de ampliar a simpatia na tropa e mostrar firmeza diante da população. No caso do RS, policiais que executaram assaltantes à luz do dia no meio da rua e sob o foco das câmeras de vídeo, foram condecorados no pátio do quartel com a presença do governador. Esse episódio é típico do avanço da tese de que “bandido bom é bandido morto” dentro das políticas oficiais. Além do apoio tradicional de mais de metade da população aferido por pesquisas de opinião – como na pesquisa do Fórum Brasileiro e Datafolha em 2016 onde 57% dos entrevistados apoiavam essa frase – a ideia de que, se for criminoso, a polícia pode matar, vem ganhando espaço nas políticas de segurança.
No campo da Justiça, a tese de que profissionais de segurança pública não cometeram uso excessivo da força letal, como no massacre do Carandiru em 1992 ou no assassinato do menino de 10 anos Eduardo de Jesus na porta de sua casa no Complexo do Alemão em 2015, mas sim “legítima defesa”, foram chanceladas por instâncias do Judiciário estadual de SP e RJ em 2016 criando dois casos icônicos de um momento do Brasil. Um pacto silencioso entre o Judiciário e as PMs foi sacramentado, como se as Justiças estaduais mandassem um recado para as polícias: nas favelas ou nas cadeias, contra pobres e negros, o excesso de força pode ser justificado: “não vamos atrapalhar o serviço da polícia”. Pesquisa realizada pelo Cesec e divulgada em novembro de 2016 mostrou que os próprios membros do Ministério Público Federal são os primeiros a reconhecer que os MPs não cumprem suas missões constitucionais e exclusivas de controle externo das polícias.
No meio de um “annus horribilis” em que os direitos perderam para as políticas repressivas de segurança por um placar tipo sete a um, pelo menos alguns aspectos relevantes e positivos se destacam. Primeiro, cresceu o interesse sobre os dados da área de segurança. Em 2016, mais de 100 milhões de pessoas tiveram acesso a matérias, reportagens e números do Anuário de Segurança do Fórum Brasileiro só em jornais, rádios e TVs – sem contabilizar o acesso por redes sociais – constituindo um recorde em dez anos.
Em segundo lugar, o tema da violência contra a mulher, especialmente o tema da violência sexual parece ter tomado a cena brasileira de forma definitiva. O “estupro coletivo” de uma adolescente em uma favela carioca por jovens ligados ao tráfico local, em maio de 2016, mobilizou não apenas feministas e defensores dos direitos humanos. A pergunta do delegado carioca que atendeu a vítima (“você está acostumada a fazer sexo grupal?”) resultou no afastamento do titular da Delegacia de Repressão aos Crimes de Informática. Em meio a polêmicas na internet o “Extra”, jornal impresso de venda em bancas, estampou uma capa histórica, brigando com seus leitores: “Houve estupro” (30/05/16). O jornal disse que recebeu milhares de críticas de leitores argumentando que “ela também não é santa”, “foi orgia, e não estupro” etc. O “Extra” respondeu a cada argumento e reafirmou sua decisão de chamar o fato de “estupro coletivo”.
Em setembro de 2016, eu vi Maria da Penha, a mulher ícone da campanha da violência contra as mulheres, ser aplaudida de pé durante vários minutos no Encontro do Fórum Brasileiro de Segurança Pública em Brasília. No meio de mais de 500 policiais militares, delegados, agentes, pesquisadores e ativistas eu me dei conta: a violência contra a mulher não é uma agenda de esquerda, de direita, de conservadores ou progressistas. Tudo indica que aos poucos vem se tornado uma agenda do país.
Na minha opinião, a moral de 2016 é que uma pergunta deveria orientar as investigações de especialistas, jornalistas e pesquisadores em 2017: por que os temas dos direitos humanos provocam respostas tão reativas em parte expressiva da população e nas forças de segurança? Onde nós estivemos errando nas últimas décadas? Se não formos capazes de começar a responder a isso, tenho a impressão de que não seremos capazes de produzir respostas brasileiras à violência.