Na quinta-feira (30), foi divulgado um vídeo que flagra dois policiais militares atirando à queima-roupa contra dois homens que estavam caídos na calçada ao lado de uma escola da zona norte do Rio. No mesmo dia, naquela unidade de ensino, uma estudante de 13 anos morreu após supostamente ser atingida por balas perdidas de um conflito entre policiais e criminosos na região.
No vídeo da execução, um dos homens caídos levanta a cabeça e é alvejado no peito por um policial. O outro homem, que não demonstra qualquer reação, também é alvo de um tiro no peito. Após a divulgação do vídeo pela imprensa na manhã de sexta-feira (30), o Comando da Polícia afirmou que o caso estava sendo investigado pela Corregedoria da instituição e que os policiais envolvidos, que não tiveram seus nomes revelados, entregaram suas armas para serem periciadas e estão presos na unidade prisional para policiais, em Niterói, na região metropolitana do Rio.
Esse é mais um caso em que uma cena gravada por cidadãos comuns circula pelas redes sociais mostrando execução policial de pessoas já rendidas e que não pareciam ser capazes de qualquer reação ou ameaça. As cenas gravadas mostram que “aquilo não é um ponto fora da curva, aquilo é uma coisa que acontece com frequência”, segundo a cientista social Silvia Ramos, coordenadora do Cesec-Ucam (Centro de Estudos em Segurança e Cidadania da Universidade Cândido Mendes), no Rio de Janeiro, doutora pela Fundação Oswaldo Cruz em Violência e Saúde e coordenadora de diversos estudos na área de segurança pública.
Para ela, “a população mais pobre já entendeu que a ouvidoria de polícia delas são as redes sociais e são os seus telefones celulares”. Mas ela aponta que a falta de um posicionamento firme dos comandos da polícia, como o Comandante-Geral, o secretário de Segurança Pública e o governador, em reprimir o caso, deixa os responsáveis pela gravação dos vídeos em risco. Além disso, Ministério Público e a Justiça têm tido frequentemente a atitude de dizer “não vamos julgar aqueles que estão na rua”, o que mostra conivência das autoridades com a letalidade policial.
Nesta entrevista ao Nexo, Silvia Ramos diz também que o aumento da letalidade policial é responsável pelo aumento do número de crimes em geral: “Quando tem mais mortes produzidas pela polícia, tem mais homicídios e tem mais crimes contra o patrimônio. Quando tem menos mortes produzidas pela polícia, tem menos homicídios e tem menos crimes contra o patrimônio.”
O uso de câmeras para registrar atos de violência policial tem se proliferado. Esse é um recurso adotado pela população para se proteger?
SILVIA RAMOS – Eu acho que sim, e no caso de violência policial no Rio de Janeiro, já tem esse e mais dois ou três casos muito importantes. Como em 2014 em que filmaram os policiais botando a arma na mão de um menino morto na UPP da Providência [caso em que policiais alteraram a cena de um suposto conflito com um adolescente]. Esses são típicos casos que todo mundo sabe que acontece, a Anistia [Internacional] já fez matérias, já fez relatórios. Eu sei como isso acontece e afirmo: talvez metade dos autos de resistência, ou as mortes provocadas pela polícia (que agora aumentaram em 78% de um ano para o outro), eu arriscaria dizer que metade poderiam ter sidos evitados. Metade são casos em que os criminosos ou estavam feridos, ou já tinham se entregado, ou não estavam olhando, não estavam ameaçando o policial… A questão é: como é que isso acontece? Acontece assim como eles fizeram ali à luz do dia, não em um beco escuro, em uma favela, à noite em um lugar em que ninguém estava olhando, mas fizeram à luz do dia, no muro de uma escola. É assim mesmo, o cara está ferido, o policial sai correndo, pede reforço, talvez aquele rapaz que se mexeu um pouco, o tenente falou tal coisa para ele, o cara vai lá e atira com a própria metralhadora a uma distância tão próxima. Caso houvesse uma investigação, o policial teria sido punido por assassinato, mas eles estão tão certos de que não vai haver [investigação]… No caso do morro da Providência foi isso. Houve uma troca de tiros e um policial foi lá e enquanto o corpo ainda estava caído ele botou a arma na mão do menino e deu tiro pra cima, para deixar o dedo do garoto com pólvora como se ele tivesse atirado.
A gente viu no caso do morro da Providência, que foi um caso bem parecido [com esse atual]: eles pegaram o chamado “kit auto de resistência”, pegaram uma arma velha, um kit que já tem lá na UPP. Eu tenho certeza de que nesse caso, a importância de ter sido gravado é esta: aquilo não é um ponto fora da curva, aquilo é uma coisa que acontece com frequência, mas só que um dia foi gravado.
A filmagem e registro desse tipo de imagem por parte de moradores de uma comunidade pode colocar essa comunidade ainda mais em risco?
SILVIA RAMOS Eu acho que depende da atitude da polícia [frente ao caso]. No caso do morro da Providência ficou evidente que quem tinha gravado era de dentro da favela, que é uma favela meio pequena, então não era difícil dos policiais da UPP localizarem quem tinha gravado. Mas o comando da Polícia Militar local, o comandante da polícia local da Providência, o Comando-Geral [da PM do Rio de Janeiro] na época imediatamente tomaram uma atitude tão forte, eles mandaram prender todos os policiais da guarnição. Eles tiveram uma resposta tão forte, que deram uma empoderada nos moradores, desestimularam qualquer tipo de reação da polícia do tipo “você vai ver, você me paga”, porque os policiais todos ali daquela guarnição foram trocados de lugar. O que aconteceu ontem é um caso bem mais preocupante. Nós temos neste momento no Rio de Janeiro a ausência do governador, a ausência do Secretário da Segurança. E hoje na hora em que os policiais [envolvidos no caso de Acari] chegaram para prestar depoimento, tinha dezenas de policias do 41° batalhão [divisão da polícia militar responsável pelo policiamento em Acari] ali na porta da DH [Divisão de Homicídios]. Ou seja, os policiais do 41° foram lá dar apoio aos dois policiais que assassinaram aqueles dois. São dois policiais que flagrantemente cometeram um crime, são assassinos porque mataram pessoas que não os estavam ameaçando naquele instante. O porta-voz da PM [Major Ivan Blaz] deu hoje uma entrevista ao jornal local da Globo, RJTV, muito preocupante, dizendo que os policiais lá se sentem em guerra. Quando perguntado sobre o que ele achava daquela atitude, o porta-voz falou que era muito difícil o cara virar o canal seletor da TV: uma hora ele é o garantidor de direito, outra hora ele é um guerreiro. Assim, as pessoas que gravaram esse vídeo elas estão em risco mesmo. E elas estão em risco porque tem uma resposta muito fraca dos comandos.
Eu acho que hoje os policiais do Rio de Janeiro que se utilizam com frequência de violência e de excesso de uso da força estão mais fortes do que estavam ontem. O major que é o porta-voz está dizendo que aquilo é uma guerra, que fica em uma área conflagrada e só o policial ali no local é que pode saber se é certo ou errado fazer aquilo o que fez. Os policiais do 41 estão se sentindo mais empoderados do que estavam ontem e se eles localizarem quem gravou [o vídeo], acho que as pessoas correm risco mesmo. Lembra daquele policial de Diadema que ameaçava as pessoas e voltava no lugar, Rambo? [caso do policial militar Otávio Lourenço Gambra, que torturou moradores e matou Mário José Josino em Diadema, SP, em 1997] Aquele foi o primeiro caso em que alguém teve coragem de ir lá e gravar um dia, dois dias, e quando aquilo veio à tona no Jornal Nacional, o Ministro da Justiça falou, o Presidente da República falou, foi uma comoção. Eu acho que a população, sobretudo a população mais pobre, principalmente do Rio de Janeiro, mas não só, já entendeu que a ouvidoria de polícia delas são as redes sociais e são os seus telefones celulares. As ouvidorias não existem e não funcionam se as próprias pessoas não tomam a iniciativa. E isso mudou as polícias, e não foi só no Rio. A ideia de que as pessoas gravam o que a polícia faz e, portanto, elas provam aquilo que nós já sabemos, isso é o instrumento mais poderoso de controle da polícia.
Em São Paulo, a Justiça absolveu recentemente três policiais militares acusados de empurrar um jovem do telhado e depois matá-lo. A cena foi filmada. Em que medida esses registros cumprem a função de prova?
SILVIA RAMOS O que nós temos visto nos últimos anos no Brasil de um modo geral é que, pela Constituição, o Ministério Público é o órgão que legalmente faz o controle externo da polícia. Nós temos visto, via de regra – isso pode mudar um pouco em um Estado ou outro, mas isso é assim em São Paulo, Rio, na maioria dos Estados, onde a polícia faz o uso excessivo da força com bastante frequência -, que o Ministério Público tem sido não só fraco no controle da polícia, mas tem transmitido aos policiais um recado que é: “vocês podem abusar da força que nós não vamos botar a barra aqui do nosso lado”. E quando os casos chegam à Justiça o que a gente vê é que essa equação – a justiça dizendo não vamos atrapalhar o seu trabalho – é pior ainda do que a do Ministério Público.
Nós vimos isso nesse caso de São Paulo, nós vimos isso naquele caso daquele menino Eduardo, que estava na porta de casa na Semana Santa de 2015 e levou um tiro na cabeça… [caso aconteceu no Complexo do Alemão, no Rio de Janeiro] Faz dois ou três meses que três juízes do Rio de Janeiro suspenderam o processo, cancelaram. Não é que absolveram os policiais, não é que os policiais foram a juri e foram absolvidos, como no Carandiru. O que nós temos visto, no caso do Carandiru, nos casos mais icônicos, emblemáticos, do Rio, neste caso. A Justiça tem reiteradamente transmitido uma mensagem para a tropa, para o policial que está na rua que é: “não se preocupe que nós vamos deixar vocês trabalharem”.
O que mais choca é que quando chega na Justiça – e mesmo em casos em que há toda comprovação, todas as evidências que deveriam ser suficientes -, a Justiça tem tido com muita frequência essa atitude de dizer que “nós não vamos julgar aqueles que estão na rua”. Eu não acho que problema é do vídeo, o problema não é que esta prova não vale. Hoje mesmo eu vi uma declaração de um membro do Ministério Público, dizendo que o vídeo desses dois era mais do que suficiente para comprovar que houve uma execução. Vamos ver como vai ser este caso na Justiça. Eu aposto com você que não vai dar em nada.
Essas imagens impactam a opinião pública, numa sociedade em que mais da metade dos cidadãos acha que ‘bandido bom é bandido morto’?
SILVIA RAMOS Uma parte muito expressiva da população (talvez inclusive seja a maioria) neste momento – no Rio de Janeiro é mais da maioria – quando vê um vídeo como esse fala “são bandidos, quem mandou? Policiais são heróis”, acho inclusive que é isso que anima essa tropa a continuar fazendo isso todos os dias.
Você sabe que estou vendo aqui agora no [jornal] “Extra”, os dois policiais envolvidos têm 37 autos de resistência [esta informação]. Você ficou chocada? Ele não! Ele foi para casa, botou a cabeça no travesseiro e no dia seguinte ele acordou e pensou “vamos continuar com a missão de deixar corpo no chão”, essa é a música do Bope. O Bope entra e deixa corpo no chão. É o que anima, fortalece e justifica a manutenção desse padrão de polícia no Rio, que não é exclusivo. Sabe quantos autos de resistência tiveram os batalhões da zona sul no ano passado inteiro? Zero, nenhum! Nenhum no Leblon, Copacabana, Ipanema. Isso é um padrão de polícia em certas áreas da cidade. Se acontece policial atirando na porta da escola na zona sul, ali em Copacabana, provavelmente ia cair o secretário de segurança, mas lá nessa área [em Acari] pode.
Os policiais e os comandantes sabem que eles têm apoio de uma parte expressiva da população. Minha resposta pra isso é a seguinte: e daí? Continua sendo crime, se o policial tem apoio, o comandante vai dizer “a maioria da população está nos apoiando”. E daí que a população está apoiando? Isso aí é crime, é ilegal, é assassinato.
Digamos que uma parte expressiva da população apoie a corrupção (e um monte de gente apoia a corrupção, apoia que seja feito um roubo de carga porque ele compra ali na rua da Alfândega um celular por R$ 200 reais, quando ele custaria R$ 2.000), o cara apoia isso, e daí? Vamos apoiar? Não vamos mudar por causa disso? Roubo é roubo, o que está errado está errado e o que está certo está certo.
Eu lamento hoje, não só a existência desses policiais, que são cabos e sargentos, na ponta, e o cara tem mais de 20 autos de resistência na carteira dele, assinado ali. Eu lamento, sobretudo, a presença de um comando omisso que manda um porta-voz, que é o major, falar na televisão e não aparece nem o comandante do batalhão, nem o comandante da polícia militar, nem o secretário de segurança vem a público pra dizer que isso é errado, não é nossa política, nós não vamos permitir isso.
Eu tenho a impressão de que uma parte dessa coragem de omissão que eles têm, de serem capazes de manter o silêncio de uma forma quase inacreditável, acho que uma parte disso se explica pelo fato de que eles sentem que uma parte da população os apoia.
O Brasil está entre os países com os índices mais altos de violência policial. Essa violência da polícia coíbe o crime e melhora os índices criminais?
SILVIA RAMOS A gente está hoje aqui no Rio, temos um caso exemplar. Nós estamos com os autos de resistência, ou seja as mortes produzidas pela polícia em confronto, com um aumento de 78% de um ano para o outro. Nós estamos com os homicídios com aumento de mais de 20%. E estamos com crimes contra patrimônio, roubo de veículos, roubo de cargas, roubo a transeuntes, com um aumento também monumental. Além de recorde de policiais mortos.
Então temos a comprovação de que essa política de aumento de tiroteios nas ruas e de policiais matando (e a diferença é de 78% de um ano pra outro), temos a comprovação mais do que evidente de que quando aumenta o número de mortos pela polícia, aumenta o número de policiais mortos, de balas perdidas e não caem os crimes contra o patrimônio, pelo contrário.
Aquela região lá tem um número recorde de roubo de carga. Ali, no Rio em geral, e no 40° Aisp [Área Integrada de Segurança Pública, divisão do Estado], que coincide com a área do 41° batalhão [da Polícia Militar], nós temos um caso completo e perfeito de evidências de que policiais atirando mais e matando mais não produzem efeitos positivos a nenhum dos indicadores de segurança, pelo contrário, produzem efeitos negativos.
Um ano antes das UPPs, nós tivemos um número recorde de autos de resistência no Rio, que era de 1.330. Depois das UPPs, esses números foram caindo, nós chegamos a quatrocentos e pouco em 2012-2013, e aí voltaram a subir e hoje nós chegamos ao número de 920, ou seja, nós estamos de novo próximo de 1.000. Com certeza neste ano de 2017, se se mantiverem no resto dos meses os números de janeiro e fevereiro, nós vamos ultrapassar de longe os 1.000.
Então é como se fosse um estilingue: estava muito esticado, com a política das UPPs esse número baixou, é importante dizer que esse número baixou não apenas nas favelas com UPP, baixou em todo estado do Rio porque havia uma política de segurar a tropa para que ela modificasse esse padrão do policial matador, do policial Bope, do guerreiro. E há agora de novo a ausência de uma determinação de controlar a tropa.
O número total de mortos pela polícia é um puxador tradicional no caso do Rio: é quem puxa os outros números. Quando tem mais mortes produzidas pela polícia, tem mais homicídios e tem mais crimes contra o patrimônio. Quando tem menos mortes produzidas pela polícia, tem menos homicídios e tem menos crimes contra o patrimônio. Basta olhar a curva. Num artigo que eu escrevi publicado no Cesec, “30 anos de política de segurança”, eu mostro isso: o que puxa a curva de violência no Estado do Rio há 30 anos é o número de autos de resistência, ou que agora se chama mortes provocadas em operações policiais.
O que pode ser feito ou quem pode mudar esse quadro?
SILVIA RAMOS Eu estou muito segura de que esse tipo de fenômeno é muito sensível a comando. É impressionante, não tem nenhum fenômeno de violência mais sensível a comando do que mortes provocadas pela polícia. Tem várias evidências disso em São Paulo e no Rio. Pra gente mudar essa sensação de que tem policial atirando na rua, e de que onde tem policiamento, tem insegurança, precisa de política de segurança e política de segurança articulada em alto e bom som. Precisaria que o governador e o secretário de segurança fizessem, como já fizeram no passado, um esclarecimento e uma divulgação das suas políticas de segurança. E de que essas políticas são contrárias a esse tipo de atitude. Na minha opinião, seria possível derrubar esses números em um mês. Mas a pergunta que a gente faz é se o governador e os gestores dessa política de segurança vão ter coragem de fazer isso.
Na Colômbia, você tinha um carro de polícia passando tinha um vazio na frente e atrás, onde tinha polícia, tinha medo, insegurança e tiroteio. Eu vejo a hora que vai acontecer isso no Rio, em vez de se dizer “chegou a polícia, chegou a segurança”. Por enquanto isso está sendo nas áreas mais pobres, mas estou vendo a hora disso acontecer no resto da cidade. Um temor geral da polícia, as pessoas terem medo de quando chega a polícia, porque onde tem polícia tem tiroteio, tem gente atirando e tem gente respondendo ao tiroteio.