Pesquisa realizada pelo Centro de Estudos de Segurança e Cidadania (CESeC) revela que as unidades pacificadoras não modificaram o cotidiano de moradores de favelas.
Rio de Janeiro, dezembro de 2008, em meio ao morro que divide os bairros de Botafogo e Laranjeiras, a primeira unidade de polícia pacificadora (UPP) foi instalada na favela Santa Marta pela Polícia Militar.
De lá para cá, a intervenção foi defendida por muitos como a solução para o tráfico de drogas e a violência nos bairros cariocas. Hoje, a crise do estado é somada aos índices de violência em patamares que beiram o inaceitável.
Só neste ano, a cada sete horas, um carioca foi vítima de bala perdida. No ano passado, por exemplo, o Rio de Janeiro registrou o maior número de mortes violentas dos últimos seis anos.
Para os moradores das 37 favelas em que as UPPs estão presentes, a implantação das unidades não modificou em nada o seu cotidiano.
De acordo com o relatório UPP: Última Chamada – Visões e expectativas dos moradores de favelas ocupadas pela Polícia Militar na cidade do Rio de Janeiro, divulgado nesta terça-feira (22), pelo Centro de Estudos de Segurança e Cidadania (CESeC), ao serem indagados sobre os aspectos positivos ou negativos da ocupação, entre 55% e 68% dos moradores responderam que a presença da UPP “não faz diferença”.
“Ao longo desses últimos anos, a impressão que temos é a de que a UPP é uma empresa em que ninguém está satisfeito. Os policiais não estão satisfeitos em trabalhar nas unidades e os moradores também não estão satisfeitos com o policiamento. Mas, ao mesmo tempo, a pesquisa deixou claro que os moradores defendem a permanência das unidades. Só que é uma medida que precisa de mudanças urgentes”, explica Silvia Ramos, uma das coordenadoras do relatório.
“O pior que poderia acontecer seria o estado abandonar essas áreas. Não se pode simplesmente desistir das favelas. O problema da favela é da cidade e não da favela. É dever do poder público. E as políticas que estão hoje com tiroteios que permanecem há mais de 10 dias em um mesmo território não podem continuar.”
As unidades baseiam-se no conceito de “polícia de proximidade”. De acordo com Silvia Ramos, tal tipo de policiamento requer que sejam criados laços entre os policiais e a comunidade.
Ela explica que onde existe uma área com a segurança comprometida você não pode produzir um policiamento que entra e sai, que aparece de vez em quando. Mas sim uma polícia que tenha uma relação com os moradores controlada.
“O policial te conhece e você também. Esse tipo de interação tende a reproduzir uma relação de confiança que vai aumentando. O policial conhece os moradores e suas rotinas. Esses tipos de laços comunitários tendem a reduzir a suspeição e aumentar a capacidade da polícia de descobrir uma situação diferente.”
Porém, o último relatório do CESeC relata uma realidade diferente. Segundo os moradores, poucos foram aqueles que tiveram contato direto com os policiais das UPPS em situações rotineiras. Por exemplo, 96% dos entrevistados alegaram que sequer pediram informações aos profissionais.
A coordenadora analisa que ao longo do processo de implantação das UPPS, esse modelo de “proximidade” foi logo substituído por um policial que tem como método a revista e a patrulha.
“Ele impede qualquer possibilidade de criar esses laços. Ele passa na viatura, para e aborda os moradores. Verifica se tem uma situação suspeita e vai embora. Na comunidade, esse procedimento era para ser reduzido ao minimo. Mas em muitos casos esse policiamento de proximidade foi substituído por um policiamento provocativo. Para os jovens, a revista é extremamente suspeita e humilhante”, argumenta a pesquisadora.
Para ela, houve uma falha muito grave ao não investir em planejamento e na inteligência das operações, o que permitiu que um fluxo de armas e fuzis se recolocassem nas favelas. A coordenadora explica que o movimento se deu paralelamente ao fato de que o policiamento das UPPs foi perdendo prestígio.
“Ao perder legitimidade foi preciso usar a força”, analisa.
Em outras pesquisas do CESeC, publicadas entre 2010 e 2014, o público alvo foram os policiais. Silvia relembra que a polícia relatou diversos casos de apedrejamento dos moradores contra as viaturas, por exemplo.
“Não é um problema só com o crime. É um problema com os moradores. O policial que se descontrola com o morador e abusa da força. O morador que desrespeita totalmente o papel do policial”, analisa.
Para ela, os policiais das UPPs foram formados como policiais comuns, enquanto eles precisariam de treinamento específico, além de um acompanhamento e de uma penalização para os agentes com más condutas.
Outro ponto levantado pelo relatório são as diferenças significativas entre a percepção das UPPs em regiões distintas da cidade. Para os moradores da Zona Centro e Sul a UPP trouxe benefícios (48%), já os moradores da Zona Oeste são os que menos acreditam nisso (23%).
De acordo com a pesquisa, estes dados revelam que a política tem funcionado melhor nas áreas “nobres” do Rio. Outros dados reiteram tais percepções.
Nos territórios próximos aos bairros nobres é onde se registrou uma parcela mais baixa de pessoas abordadas repetidamente; os moradores têm maior percepção de impactos positivos da UPP sobre a economia local; e há a sensação de segurança, o que também influência na melhor avaliação dos policiais.
Durante o ano de 2016 foram aplicados questionários de 56 perguntas a 2.479 pessoas com 16 anos ou mais de idade. A amostra serviu como representação para o universo considerado de 777.506 homens e mulheres que residem nos territórios em que as UPPs estão presentes. Estes moradores correspondem a cerca de 15% da população carioca com 16 anos ou mais, segundo o último Censo do IBGE.
Apesar da indiferença que marcou a maioria das respostas, outra parcela dos moradores acredita que a ocupação dos policiais trouxeram benefícios.
Eles destacam o melhor acesso a serviços públicos e privados, as obras de infraestrutura, os projetos sociais, as oportunidades de trabalho e a liberdade de ir e vir. Entre os aspectos negativos, constam o aumento dos alugueis, o êxodo de moradores, os tiroteios, as mortes, além dos desaparecimentos, roubos, furtos e estupros de moradores.
“A maior surpresa dessas pesquisas é que apesar de serem críticos, os moradores querem que a UPP fique nas comunidades. Mas eles querem que ela seja modificada. Isso mostra que é a mesma relação que nós, ‘da cidade’, temos com a polícia. Não queremos o abandono, mas a transformação”, explica Silvia Ramos.
Entre as modificações necessárias para a permanência das UPPs, os moradores defendem o fim das incursões violentas da polícia e dos tiroteios; o melhor treinamento dos policiais; a punição dos desvios cometidos pelos agentes; além de melhores condições de trabalho para os policiais; mais efetividade no controle dos criminosos e a tão prometida oferta de outros serviços públicos além do policiamento.