Ex-policial americano, que atuou por mais de 30 anos no combate ao narcotráfico, hoje é diretor de uma organização que luta pela legalização e regulação desse mercado
Por mais de três décadas, Neill Franklin serviu à polícia estadual de Maryland, nos Estados Unidos. Depois do assassinato de um amigo que atuava como agente infiltrado em meio a traficantes de drogas, decidiu dedicar-se à defesa da legalização e da regulação das drogas. Hoje é diretor executivo da Leap — Law Enforcement Action Partnership (Parceria de Agentes da Lei para a Ação). A organização, criada em 2002 por dois policiais, hoje também tem entre seus integrantes promotores, juízes, agentes prisionais e outros agentes da lei que pedem o fim da proibição. Eles se definem como um grupo de porta-vozes voltado para comunidades, organizações, autoridades e universidades, com o objetivo de educar as pessoas a partir de sua perspectiva sobre a questão das drogas.
O que fez com que você se interessasse pela política de drogas?
Em 2000, Ed Toatley, um grande amigo que também era policial, estava trabalhando como agente infiltrado em um caso importante com o FBI. Ele atuava comprando cocaína de um traficante de médio escalão. Um dia, o cara decidiu matar meu amigo para ficar com a droga e com todos os milhares de dólares que Ed levava para a tal compra. Ele foi morto com um tiro na cabeça, à queima-roupa. Naquele momento, comecei a questionar nossas políticas de drogas de forma séria. Fiz algumas pesquisas e encontrei o site da Leap. Entrei na organização como membro conferencista e depois me tornei diretor executivo.
Quando pensa nos custos da guerra às drogas, o que considera mais impressionante?
A violência que acompanha essa guerra. Há muitos problemas graves na área da justiça criminal, como o encarceramento em massa, e precisamos lembrar que as drogas, quando são proibidas, tornam-se muito mais perigosas, inclusive para os próprios usuários, que não sabem o que estão usando. Mas nada é mais chocante do que a violência. Meu amigo foi morto e, nos dois anos seguintes, só em Baltimore, outros dois policiais foram assassinados por traficantes. Uma família de sete pessoas foi morta porque se opôs ao sujeito que vendia drogas em frente à sua casa. Quando me filiei à Leap, me dei conta dos milhares de assassinatos que aconteciam por conflitos no mercado de drogas ilegais. O que tem visto nos outros países? Em toda a América Latina a guerra às drogas faz vítimas. Do México a Honduras e mesmo no Brasil, é nas comunidades pobres que acontece a maior parte do sofrimento. Em todos esses países, incluindo os EUA, drogas também são vendidas e consumidas entre os ricos, mas não há violência. O pior: grande parte dessa violência é sancionada pelo Estado e acontece pelas mãos da polícia.
O que leva a polícia a acreditar na chamada guerra às drogas?
Vamos voltar no tempo. Nós não escolhemos combater determinadas drogas por um problema de saúde pública. Fizemos isso porque queríamos controlar grupos de pessoas das quais não gostávamos. Queríamos controlar os negros, queríamos controlar os mexicanos. Queríamos ser capazes de encarcerá-los. Continuamos a fazer isso dentro dos EUA e depois empurramos essas políticas para o resto do mundo através dos tratados internacionais sobre drogas, usando nossa força e influência para que outros países aderissem a esses acordos.
Por que continuamos a investir em uma política sem relação com saúde? Continuamos a manter essa guerra ineficaz porque a proibição é uma grande fonte de lucro hoje. Das prisões privadas aos lucros da venda de bens fabricados por presos, uma mão de obra muito barata. Depois, a indústria farmacêutica. Estamos falando do uso da cannabis medicinal para inúmeras patologias, inclusive dores generalizadas. Os opiáceos, usados para combater dores agudas, são grande fonte de lucro para a indústria farmacêutica. Perder 10% que seja desse mercado para a cannabis significaria algo devastador para essas empresas.
No ano passado, a polícia do Rio matou tantas pessoas quanto em todos os EUA. O que pensa disso?
Se não houvesse proibição, a polícia poderia estar se dedicando ao que realmente interessa: protegendo as pessoas, investigando homicídios, evitando roubos. Muitos policiais que dizem estar combatendo as drogas no fim do dia enchem a cara porque têm uma vida difícil. E o álcool é uma droga muito mais danosa do que qualquer outra. Como o racismo influencia o trabalho policial? Nós fomos escravos neste país. Não éramos sequer considerados humanos, éramos tratados como selvagens. E não estou falando de milhares de anos atrás, mas sim do final do século XIX, na época dos meus avós. Ainda temos um longo caminho a percorrer antes que estejamos em pé de igualdade com nossos irmãos e irmãs brancas. A própria polícia sempre viu os negros de forma estereotipada, como selvagens, pessoas violentas. “Negros são muito passionais, temos que ter cuidado quando estamos perto deles. Se eles ficarem muito emotivos, vão te machucar.” Essa é especialmente uma questão entre os policiais brancos que, até entrar para a polícia, nunca haviam estado com pessoas negras. Policiais que vêm do meio rural, que por 20 anos nunca haviam convivido com pessoas negras, morrem de medo delas e, do dia para a noite, passam a servir em um bairro negro de Baltimore.
De que maneira o fim da guerra às drogas melhoraria o trabalho dos policiais?
Alguns colegas policiais e agentes costumam me dizer: “Você se tornou antipolícia”. Eu respondo: “Não. Sou mais própolícia do que qualquer um que já conheci na vida”. Eu quero que as leis e as políticas não causem mais conflito entre a polícia e a comunidade. A guerra às drogas e a proibição dessas substâncias causam muitos conflitos entre a polícia e o restante da população. Simples assim. Ser policial é ser guardião de quem não pode proteger a si mesmo. Especialmente os que são vítimas de crimes, estupros, assassinatos, roubos, furtos. A guerra às drogas não tem nada a ver com isso.
Policiais que dizem estar combatendo as drogas enchem a cara porque têm uma vida difícil. E o álcool é uma droga muito mais danosa”
*Julita Lemgruber é socióloga e coordenadora do CESeC/Ucam