Um ano da intervenção federal no Rio e a transparência dos dados

Segundo levantamento  do Observatório da Intervenção no Rio de Janeiro, informações básicas do cotidiano da pasta de Segurança, como por exemplo os números de armas e drogas apreendidas em uma operação, foram regularmente sonegadas.  Entre as 172 solicitações feitas via Lei de Acesso à Informação (LAI), apenas 9 foram respondidas satisfatoriamente.

Há poucas cidades, estados ou países em que a coleta e a sistematização de grandes volumes de dados não seja uma realidade cotidiana na gestão pública. Informação é  um ativo valioso, presente seja nas campanhas eleitorais, quando candidatos questionam políticas públicas dos adversários por meio de índices, seja no dia-a-dia da administração de uma cidade, localizando, por exemplo, os bairros em que as escolas apresentam rendimento inferior à média de uma região, entre outras utilidades. Mas é importante lembrar que as informações também são importantes para os cidadãos, que avaliam as ações colocadas em prática e dão seu aval – ou não – para as políticas propostas em uma eleição.

No caso do Rio de Janeiro, a intervenção federal na segurança pública representou uma mudança no comando das polícias, mas manteve a regularidade e qualidade de produção de dados sobre segurança e violência no Estado, através do trabalho do Instituto de Segurança Pública (ISP), órgão da Secretaria de Estado de Segurança Pública (SESEG). Os dados do ISP sobre crime e criminalidade continuaram a ser produzidos regularmente, contrastando com a postura dos comandantes da intervenção, que em diversas oportunidades demonstraram certa impaciência com a avaliação dos seus atos e se furtaram a comentar e prestar mais informações quando solicitados pela mídia ou pela sociedade civil.

O ISP, que é um instituto com excelência comprovada[1], mantém há longo tempo diálogo com outras instituições, como o Ministério Público do Rio de Janeiro, o Laboratório de Dados Fogo Cruzado, o Instituto de Tecnologia e Sociedade (ITS-Rio) e o Instituto Igarapé[2]. Certamente, essa relação próxima com a sociedade civil tem sido fundamental para que o trabalho do ISP seja referência para todos os estados brasileiros.

Rio de Janeiro, favela da Rocinha

Mas as estatísticas produzidas pelo ISP não expressam toda a realidade cotidiana de violência no Rio. Algumas questões que impactam o dia-a-dia dos cidadãos ficam fora dos levantamentos oficiais. O fato é que existem experiências cotidianas que somente a sociedade civil consegue mensurar e avaliar: o impacto de uma operação policial com horas de duração na rotina dos moradores; os padrões de conflito e disputas territoriais por grupos armados; as denúncias de violações de direitos humanos, entre outros. Informações sobre estrutura dos batalhões ou o número de tiroteios, por exemplo, ainda não estão disponíveis. Para monitorar e sistematizar estes aspectos da segurança pública, a produção de dados pela sociedade civil é fundamental, mesmo quando o governo se conduz com total transparência, porque a conjugação de  dados de diversas fontes produz um retrato mais fidedigno do cotidiano de um estado.

Foi a partir dessa premissa que o Observatório da Intervenção criou sua metodologia de acompanhamento, sistematização e divulgação de dados sobre diversos aspectos da Intervenção. O Observatório passou a fazer um levantamento, inédito até então no Rio de Janeiro, sobre as operações policiais, reunindo dados sobre local, número de agentes envolvidos, forças mobilizadas, mortos civis e policiais, feridos, presos e apreensões. Esse levantamento permitiu apontar a desproporcionalidade entre os investimentos feitos nas operações e a modéstia dos seus resultados. Foi feita ainda a leitura diária de Diários Oficiais e acompanhamento dos portais governamentais de pagamentos para entender os gastos da intervenção. Boa parte da metodologia foi inspirada em outras iniciativas reconhecidas e premiadas internacionalmente, como o Armed Conflict Location & Event Data Project (ACLED), o Gun Violence Archive e o Fogo Cruzado.

Durante os dez meses de Intervenção, os pesquisadores do Observatório revisaram as informações de dezenas de fontes: as contas oficiais das polícias e de outros órgãos de segurança nas redes sociais, bem como do Gabinete de Intervenção (GIF); os principais jornais brasileiros e fluminenses; sites de jornais e mídias alternativas; páginas de bairros no Facebook; e uma rede de ativistas de diferentes favelas de toda a Região Metropolitana. Todas as informações foram confrontadas com diferentes fontes e só foram registradas depois da validação e da revisão da equipe. Após o processo de consolidação e revisão, os dados foram divulgados na forma de relatórios e infográficos mensais. Baseados nos princípios da transparência e da abertura de informações,  fornecemos todos os nossos bancos de dados a diferentes pesquisadores, jornalistas e estudantes que fizeram solicitação, incorporando também as críticas e sugestões dos solicitantes.

Uma das características da Intervenção, percebida nesse processo de monitoramento, foi a dificuldade de acesso a informações básicas do cotidiano da pasta de Segurança, como por exemplo os números de armas e drogas apreendidas em uma operação  e gastos com material, entre outras.  Para contornar essas lacunas, realizamos solicitações via Lei de Acesso à Informação (LAI). Entre 172 solicitações feitas,  84 foram  para os órgãos estaduais. Destas, apenas 9 foram respondidas satisfatoriamente. O descaso com a transparência é tão grande que ainda existem cinco solicitações em andamento que datam de maio e junho de 2018, mais de seis meses de espera. É bom lembrar que a LAI estabelece o prazo de 20 dias úteis, prorrogáveis por mais 10 dias, para a resposta do órgão público.

No que se refere à LAI, o cenário piorou. No dia 23 de janeiro de 2019 foi publicado o decreto nº 9.690 que, em linhas gerais, modifica partes importantes da regulamentação da Lei de Acesso à Informação. O novo texto amplia o número de funcionários habilitados a classificar documentos como reservados, secretos ou ultrassecretos, o que pode significar um período de sigilo de até 25 anos. É uma medida que contraria as promessas de campanha do presidente eleito (combate a corrupção, abrir as “caixas-pretas”) e também vai de encontro a iniciativas e compromissos internacionais com os ideais de “Governo Aberto”[3].

Os órgãos do poder público precisam superar sua falta de transparência, pois estar aberto ao escrutínio público é importante para o aperfeiçoamento de suas práticas e um princípio fundamental para uma democracia saudável. Mais uma razão para que a sociedade civil seja tratada como uma aliada na produção, sistematização e consolidação de dados com o objetivo de construir, monitorar e avaliar políticas públicas baseadas em metodologias validadas e transparentes.

Pablo Nunes é Coordenador de Pesquisa do Observatório da Intervenção


[1] “Em junho de 2018, o ISP recebeu o Selo de Transparência Institucional Sobre Dados de Homicídio, concedido pelo Laboratório de Análise da Violência da UERJ, por ter seu processo de consolidação e divulgação de dados de letalidade violenta em acordo com os critérios do Protocolo de Bogotá, estabelecido por especialistas mundiais no tema. O Rio de Janeiro foi o primeiro estado do Brasil a receber o selo”. Fonte: http://bit.ly/2SazOG4 . Acesso em 15 jan. 2019.

[2] “Presente e futuro do ISP: o uso de dados e evidências na segurança pública”. Fonte: http://bit.ly/2SityfH . Acesso em 15 jan. 2019.

[3] O Brasil é o fundador da chamada Open Government Partnership (“Parceria para Governo Aberto”), lançada em 2011 e que atualmente congrega outros 73 países. Fonte: http://bit.ly/2sPttRY. Acesso em 28 jan. 2019

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