Fenômeno não é novo, mas parece se agravar, estimulado pela impunidade e pelo fato de altas autoridades públicas abertamente atacarem ativistas, jornalistas e atores políticos
O homicídio de candidatos e políticos é a expressão mais brutal da violência política no contexto eleitoral e tem enormes consequências para o processo democrático como um todo. Desde o início do ano até às vésperas das eleições municipais de 2020, pelo menos 84 políticos e candidatos foram assassinados no Brasil e 105 sofreram outros tipos de ataques ou tentativas de homicídio. Um número desconhecido, mas certamente ainda maior, sofreu ameaças e intimidações.
O estado de Pernambuco lidera o macabro ranking com 13 assassinatos este ano. Gameleiras, cidade com pouco mais de 20 mil habitantes, perdeu dois de seus nove vereadores para a violência política, os dois da oposição ao prefeito. Minas Gerais registrou nove assassinatos e Rio de Janeiro, oito. Importante destacar, também, que os homicídios e ataques aumentaram significativamente com a proximidade das eleições.
Homicídios, tentativas e outras agressões violentas intencionais contra vereadores e prefeitos, ou candidatos, em 2020 no Brasil
A violência pode ser uma retaliação a pessoas que denunciaram casos de corrupção, fraudes e crimes cometidos por candidatos e políticos, ou simplesmente uma forma de inibir o monitoramento e o controle social sobre a gestão pública. Por fim, a violência política pode ter como objetivo impedir um processo de transformação social e ser uma forma de manutenção do status quo.
De qualquer forma, os impactos da violência política e dos assassinados em contextos eleitorais são mais ou menos previsíveis: menor engajamento no processo eleitoral, retirada de candidaturas, coação de eleitores, redução da participação política e do ativismo, mudança direta dos resultados eleitorais, redução da legitimidade do governo. Em última instância, a violência e os assassinatos políticos são um ataque ao processo democrático e ao estado de direito.
Em 2010, o Relator Especial da ONU sobre Execuções Sumárias e Extrajudiciais, Phillip Alston, dedicou um relatório temático à violência e aos homicídios relacionados a eleições com importantes reflexões sobre a dinâmica em que ocorrem, o perfil das vítimas e dos perpetradores, e os impactos para a sociedade. O documento destaca que, embora muitos assassinatos de candidatos sejam cometidos por candidatos rivais e seus agentes privados (matadores de aluguel contratados, seguranças particulares, milícias ou membros de gangues), muitas vezes os membros das forças de segurança do estado também estão diretamente envolvidos.
Em todos os casos, a responsabilidade do Estado é central, uma vez que, em última instância, o Estado falhou em garantir um processo eleitoral não violento e em proteger a vida de candidatos e políticos. Além disso, muitos desses homicídios são precedidos de ameaças e se inserem em conflitos pré-existentes, e o Estado, com frequência e apesar de ciente dos fatos, deixa de intervir antecipadamente impedindo que a ameaça se concretizasse ou que o conflito se tornasse letal.
Embora violência política, violência eleitoral e homicídios de políticos sejam temas que se entrelaçam, eles não são sinônimos. A violência eleitoral se destaca de outras formas de violência política pela sua relação com o calendário eleitoral e pela motivação dos perpetradores, que buscam diretamente afetar o resultado das eleições ou o processo eleitoral em si. O Programa ONU para o Desenvolvimento (PNUD), no documento “Eleições e prevenção de conflito”, definiu a violência eleitoral como “atos ou ameaças de coerção, intimidação ou agressão física, perpetrados para afetar o processo eleitoral ou que emergem em um contexto de disputa eleitoral”.
A violência política, no entanto, é um fenômeno muito mais amplo. Ataques e assassinatos de ativistas, defensores de direitos humanos, lideranças locais, líderes sindicais, jornalistas, também compõem o quadro da violência política no país. Sob qualquer um desses aspectos, pode-se dizer que o Brasil é marcado pela violência política e que este fenômeno não é novo, nem desconhecido.
Defensores de direitos socioambientais, lideranças rurais e movimentos de luta pela reforma agrária t têm sido, historicamente, um alvo central da violência política do país. Em 2017, a Global Witness chegou a registrar o recorde histórico de 57 defensores ambientais assassinados no Brasil, assassinatos que poderiam ter sido evitados. No mesmo ano, a Anistia Internacional publicou o relatório “Ataques letais, mas evitáveis”, sobre homicídio de defensores de direitos humanos no mundo, em que destacou um padrão de inação dos Estados em evitar que essas mortes, previsíveis devido a ameaças anteriores e a conflitos explícitos existentes, acontecessem. Outro padrão identificado foi a impunidade, já que raramente os casos são levados à justiça.
Assim como nos casos de homicídios de defensores de direitos humanos e ativistas, os homicídios de jornalistas costumam permanecer impunes. Em 2020, o Brasil ficou em 8º lugar no ranking do Índice Global de Impunidade nos casos de homicídios de jornalistas, levantamento anual do Comitê para Proteção de Jornalistas, uma piora em relação ao ano anterior em que ocupava a 9ª posição.
Outros países da América Latina também apresentam um quadro alarmante de violência política como um todo, assim como de casos de violência em contexto eleitoral e assassinatos de lideranças políticas e candidatos. Nos nove meses que antecederam as eleições presidências mexicanas, em julho de 2018, pelo menos 132 políticos foram assassinados. Na Colômbia, segundo relatório da Missão de Observação Eleitoral (MOE), entre outubro de 2018 e agosto de 2019, período pré-eleitoral, 364 lideranças políticas, sociais e comunitárias sofrearam ataques e, destes, 91 foram assassinados. Guatemala, Nicarágua, Venezuela, também têm sido palco de violência política e conflitos sociais em contexto eleitoral. Não faltam exemplos na região.
Embora o contexto de cada país seja específico, parecem existir alguns elementos-chave em comum: a impunidade nos casos de homicídios contra lideranças políticas e defensores de direitos humanos e a incapacidade do Estado em evitar que conflitos políticos e eleitorais resultem em violência letal.
No Brasil, além deste não ser um fenômeno novo, ele parece estar se agravando. A impunidade é um dos fatores que alimentam a violência política no país, mas não é o único. Também alimenta a violência o fato de altas autoridades públicas abertamente atacarem determinadas pessoas ou grupos, como ativistas, jornalistas e atores políticos. Não é possível mais falar apenas em negligência ou inação do Estado em relação à violência política. Em muitos momentos, o que há é um estímulo.
Em seu relatório, Phillip Alston destacou que, em países onde candidatos ou líderes políticos controlam grupos armados privados, um esforço significativo deveria ser feito para documentar essas relações e desmantelar tais grupos antes e durante o período eleitoral. O Brasil ainda está longe disso. Por um lado, ainda há uma lacuna no campo da pesquisa e da documentação sobre as relações entre violência política, processo eleitoral, autoridades públicas e as milícias e outros grupos criminosos organizados. Por outro lado, as investigações sobre os casos não avançam o suficiente para desmantelarem as grandes redes e articulações entre os agentes do Estado e grupos criminosos que viabilizam e operam a violência política. Sem desarticular as redes que se estruturam por trás de um assassinato político, a violência seguirá sendo a forma de afirmação e reprodução política para muitos.