Costumamos achar que a mera referência a temáticas sociais, em novelas e programas de TV, representa um bem em si mesmo e que seus efeitos poderiam ser medidos pelo crescimento do número de usuários em serviços oferecidos à comunidade, ou pelo aumento da pressão em favor de políticas públicas e pela aprovação de novas leis. Nessa lógica, quanto mais os problemas forem abordados, maiores os benefícios para a população. É o que sugere, por exemplo, uma recente propaganda governamental, em que se enaltece o merchandising social.
Atualmente, a novela “Celebridades”, assistida por milhões de brasileiros(as) estimula de forma discreta o aleitamento materno, a busca de ajuda para o problema do alcoolismo e a valorização de projetos de desenvolvimento sustentável na Amazônia. Nada, entretanto, que se compare à agressividade do marketing social de sua antecessora, “Mulheres Apaixonadas”. Uma novela cheia de atrativos, com muitos méritos e numerosas resvaladas, que contrastavam com as boas intenções de seu autor. No rastro da novela precedente “O Clone”, que havia abordado de forma bastante delicada o drama dos muitos jovens e adultos devastados pelo uso abusivo de drogas (lícitas ou ilícitas), “Mulheres Apaixonadas” tratou de um vasto rol de problemas sociais (ou problemas individuais com repercussões sociais): o alcoolismo, a violência conjugal, a discriminação violenta contra idosos, a homofobia, o câncer de mama, a violência urbana, a livre circulação de armas etc., buscando, em alguns casos, apontar caminhos e soluções.
Porém, nem sempre as iniciativas de boa fé são, efetivamente, esclarecedoras e capazes de ajudar na resolução dos problemas apontados. Muitas vezes, elas contribuem, ao contrário, para aprofundá-los.
Em que medida a ficção exposta a milhões de brasileiros tem poder de seduzir, sugerir, fazer refletir ou induzir comportamentos não se sabe exatamente. Também não se pode exigir resultados sociais de autores de novelas que, em princípio, têm a liberdade de dirigir sua trama pelos caminhos que lhes aprouver, além, é claro, daqueles determinados pelas pesquisas de opinião e, portanto, pelo mercado. Mas não se pode negar que a naturalização de certas imagens veiculadas amplamente, tanto revela como alimenta comportamentos sociais. As relações vistas como naturais, aceitáveis ou desejáveis, na realidade ou na ficção, ganham uma força didática tão ou mais potente do que mil discursos, tratados, denúncias ou afirmações de princípios. Para o bem e para o mal.
Em “Celebridade”, por exemplo, em meio a diversas situações canhestras e a uma corte de personagens sem nenhum caráter, destaca-se um exemplo interessante de contribuição real ao enfrentamento do racismo: um ator negro, que não representa um empregado subalterno e tampouco está a serviço, por ser rico e conhecido, de um debate sobre a questão racial. Como fotógrafo bem sucedido ele é simplesmente um personagem como os outros. Não é necessário que ninguém o discrimine, para que seus direitos sejam ressalvados. Eles são pressupostos, assim como o são para brancos e brancas. Nesse caso, mais contundente do que qualquer denúncia de racismo é a naturalização de um universo de respeito às diferenças, onde nem mesmo o pior dos vilões ousa manifestar atitudes discriminatórias. Não se trata de acobertar o preconceito existente no mundo real, mas de antecipar um cenário possível e desejável.
Nesse sentido, “Mulheres Apaixonadas” prestou vários serviços e vários desserviços ao mesmo tempo. Entre os desserviços, alguns passaram despercebidos por serem episódicos e limitados ao enredo secundário. Um exemplo disso foi a cena, transmitida logo nos primeiros capítulos, em que uma empregada pede à patroa licença para descansar em plena tarde de domingo: como uma sinhazinha dadivosa, que compreende que até as escravas têm direito à diversão, a madame concede a licença, não porque seja um direito (àquela hora do dia, já violado), mas porque as tarefas da cozinha haviam sido concluídas. Em outros casos, o desserviço foi mais gritante, como a situação de violência conjugal vivida por uma professora espancada pelo marido psicopata. Se a idéia era chamar atenção para o problema da violência doméstica e estimular, pela identificação, a procura de saídas, o que se viu foi o oposto: a demonstração da impotência absoluta da vítima, a afirmação da inutilidade das instituições e de qualquer solução que não fosse a morte do agressor. A violência conjugal, tão comum em nossa sociedade, foi retratada em sua versão mais extrema, o que é uma alternativa perfeitamente legítima para um texto ficcional. Mas, se havia alguma veleidade em caracterizar uma temática social, como parecia haver, perdeu-se a chance preciosa de revelar o problema tal como ele se apresenta na grande maioria dos casos. Provavelmente, milhares de mulheres agredidas regularmente respiraram aliviadas, diante da TV, por não terem maridos monstruosos como aquele retratado na novela. E aprenderam um triste lição, que joga por terra os esforços árduos de tantas pessoas dedicadas a construir soluções para esse problema: “não vale a pena pedir ajuda, melhor apostar na morte”, que foi o destino dado ao marido agressor.
Além disso, a caricatura, mesmo quando retratada por atores de primeira grandeza, comporta riscos inevitáveis. Um marido monstruoso pode ser um bom recurso para expressar a magnitude do drama de uma mulher agredida, mas não ajuda em nada a romper os preconceitos e o desconhecimento generalizado sobre o tema, os quais, direta ou indiretamente, alimentam a violência doméstica. Justamente por não entender porque as mulheres permanecem por meses, anos e décadas junto aos seus agressores, grande parte da população e sobretudo os profissionais da saúde, da polícia e da justiça (que poderiam e deveriam ajudá-las) se tornam incapazes de prestar um atendimento qualificado – humano e profissional. Desatendidas e desamparadas, as vítimas retornam, freqüentemente, ao convívio do parceiro violento, reiniciando-se assim o círculo vicioso das ameaças e agressões.
Quando uma relação se transforma apenas num inferno de perseguição, controle e pancadaria, quando desaparecem de cena a complexidade humana, os múltiplos vínculos que unem um casal e os diversos fatores que podem dar sentido a uma relação, ela se torna, evidentemente, incompreensível. Perdem-se de vista, então, as dinâmicas em que se ancora a violência doméstica. O próximo passo é culpabilizar as vítimas e imaginar que, se elas permanecem ao lado de um homem devotado, em tempo integral, à agredi-las é porque devem extrair daí algum prazer e, apanham, portanto, por opção.
Porém, em matéria de desserviço, nada foi tão dramático como a cena do capítulo final dessa mesma novela, em que um pai, tido como generoso e bem-intencionado, tenta corrigir os desvios de comportamento da filha, praticando, contra ela, variadas formas de violência e humilhação. A cena causou perplexidade, não apenas por ele tê-la exposto à execração pública, exibindo-a num saguão de hotel como se fosse um animal no zoológico. O que se ofereceu para milhões de brasileiros(as), na verdade, foram cenas de uma pedagogia do medo, que endossaram, pela naturalização, a cultura da violência em que vivemos mergulhados. A frase de sentido ambíguo exclamada ao final do espetáculo das agressões físicas e psicológicas foi reveladora: “o que faltou”, conclama o pai, segurando a filha delinqüente pelos cabelos, “foi educação”. A cena seguinte demonstra a eficácia do método: a moça, já reposta nos trilhos e desfrutando do convívio familiar, beija carinhosamente os avós que antes costumava maltratar. O preço da garantia dos direitos dos idosos foi o flagrante desrespeito à integridade e à dignidade de um ser humano e a reificação do espírito de vingança, expresso no uso de um “corretivo” feroz.
A morte soluciona a violência conjugal e a violência paterna reconduz ao seio da família a filha desviada! Há quem creia ainda que surras e palmadas devem fazer parte do processo educativo, assim como se supunha, há alguns anos, que a palmatória ajudava as crianças a aprender mais rapidamente suas lições escolares. Uma lição certamente é aprendida quando naturalizamos essa pedagogia da violência: apesar de todos os direitos conquistados ao longo do processo civilizatório, continuamos, inadvertidamente, realimentando e legitimando a barbárie, ainda que em nome dos mais nobres objetivos. Será esse o tipo de merchandizing social com que construiremos uma sociedade mais justa e democrática?