Poucos dias atrás, uma operação da polícia militar em favelas de Quintino, um bairro da Zona Norte carioca, deixou dez pessoas mortas. Um dia antes, um policial matou uma menina de cinco anos, Ana Clara Machado, na porta de casa, em uma favela de Niterói. Os policiais disseram que revidaram injusta agressão de criminosos armados, os moradores disseram que não houve confronto. Os policiais atiraram em meninos mexendo nos celulares, que eles confundiram com armas. As discrepâncias foram tantas que dessa vez o delegado decretou a prisão do policial que matou Ana Clara.
Em vez de choque diante dessas tragédias, foi uma semana normal no Rio de Janeiro. Conhecemos essas narrativas de cor, elas não surpreendem. De um lado uma chamada megaoperação “para combater traficantes em disputas com milicianos” que tem como resultado um massacre de proporções chocantes, mas que é considerada bem-sucedida pela fonte oficial. Foram apenas mais dez “suspeitos” que se juntam aos 1.239 mortos pela polícia do Rio de Janeiro em 2020, em que 86% são negros, como mostrou o documento A cor da violência policial.
De outro lado, uma criança que “ficou no meio de um tiroteio” quando estava na porta de casa numa favela. A tragédia relembra histórias de outras crianças de favelas, todas negras, como Eduardo, Ágatha, Emily e Rebeca. A repetição dos fatos inaceitáveis, o aumento dos números assombrosos, em vez de indignar, produz naturalização, prostração, impotência.
As polícias fluminenses escolheram o confronto e a letalidade como método e repetem esse modelo independentemente do governo ou das dinâmicas de criminalidade. Não se trata de governos de esquerda ou de direita, da presença ou ausência de interventores militares no comando da segurança. As polícias fluminenses estacionaram nas narrativas de que precisam combater as drogas, os traficantes e os criminosos usando métodos violentos. Mas esses métodos só resultam no fortalecimento desses mesmos grupos que eles dizem combater (traficantes e milicianos se tornam mais armados a cada ano). E assim as megaoperações, as mortes de crianças e os índices de letalidade policial se justificam e alimentam uma máquina de violência incessante.
Não é que esteja ocorrendo aumento de criminalidade, ou ao contrário, que esteja ocorrendo redução da criminalidade. Qualquer dinâmica serve para justificar um modo de ser das polícias fluminenses: confrontos diários nas áreas periféricas, guerra às drogas, morte aos traficantes ou aos milicianos-traficantes. Operações exclusivamente nas favelas para combater armas e drogas no varejo se combinam com nenhuma ação de inteligência para interceptar armas e drogas no atacado.
O que existe de próprio nas dinâmicas criminais fluminenses não é que os criminosos daqui são diferentes dos criminosos de MG, SP ou ES. É que as polícias fluminenses estimulam uma criminalidade armada, violenta e letal com sua corrupção e suas políticas de segurança armadas violentas e letais para todo o estado.
As polícias não vão mudar
Este início de 2021 é idêntico ao que ocorreu na segurança pública em 2020, em 2019, 2018 etc. e confirma o que temos observado há mais de 30 anos nas políticas de segurança do RJ (link do artigo https://cesecseguranca.com.br/wp-content/uploads/2016/10/Livro-PJD.pdf). Excluindo pequenos períodos em que as corporações foram mantidas sob o controle de gestores que se esforçaram para evitar confrontos e mortes (por exemplo, gestão Luiz Eduardo Soares em 1999, gestão Beltrame entre 2010 e 2015), a força propulsora da alta letalidade e da brutalidade cotidiana nas favelas tende a retornar. E às vezes volta de forma surpreendente.
Ao ponto de ter havido, durante a pandemia de 2020, a vergonhosa intervenção da Suprema Corte na segurança pública do Rio, suspendendo operações policiais em favelas a partir de 5 de junho, com uma queda da letalidade de mais 70%. Um ponto de destaque é que todos os demais crimes contra o patrimônio e contra a vida, sem exceção, caíram ou se mantiveram estáveis nos meses de queda das mortes por ação policial. Os resultados confirmaram que as polícias fluminenses só mudam com controle externo e ameaça da força da lei (Fonte: Instituto de Segurança Pública / RJ).
É mais do que letalidade. As mortes são a ponta do iceberg de um cotidiano de violências e humilhações sofridas por moradores de favelas, especialmente jovens negros. Atrás das mortes se escondem tiroteios, xingamentos e incessantes abordagens racistas e preconceituosas que pavimentam a relação de ódio e desconfiança entre moradores das áreas pobres e agentes.
As polícias fluminenses resistem às mudanças e recusam a modernização. Até hoje batalhões funcionam em edificações do século XIX, em que por exemplo o controle de armamentos e munições dispensados aos soldados e guarnições é feito em folhas de papel sem sistemas automatizados do uso de meios letais diários. Diferente das áreas de saúde e educação, que procederam verdadeiras revoluções em seus hospitais e escolas e nos sistemas de controle nas últimas décadas, os batalhões mantem rotinas arcaicas que valorizam o policial guerreiro, vestindo roupas com símbolos de morte, portando máquinas automáticas, coletes e botas, desfilando pelas favelas com as pontas dos fuzis para fora das viaturas ou escondidos dentro de veículos blindados.
Não faltariam recursos para mudar. Pelo contrário, o RJ é o estado que mais gasta em segurança pública, proporcionalmente ao orçamento. Foram 21,2 bilhões no ano recorde de mortes pela polícia.
A única forma de reduzir os danos causados pelas polícias é reduzir as polícias. Reduzir os efetivos, os armamentos, o método de policiamento baseado em rondas e abordagens preventivas e principalmente reduzir drasticamente os investimentos no modelo atual de enfrentamento do crime.
Depois de quase 30 anos pesquisado segurança pública no Rio de Janeiro, verifico que para controlar a criminalidade e a violência policial é preciso aumentar os controles externos e reduzir os investimentos nas forças de segurança. Mais STF, mais educação, saúde, assistência social e cultura. Menos polícia.