De roubos, drogas e hipocrisia

Artigos e discussões carregados de argumentos favoráveis e contrários à descriminalização do uso e do tráfico de drogas têm deixado de abordar algumas questões básicas. No momento em que vetos presidenciais alteram a maior parte da legislação antidrogas que o Congresso Nacional levou dez anos para aprovar, é preciso, de uma vez por todas, deixar a hipocrisia de lado e abrir um debate sério, neste país, sobre a descriminalização das drogas.

E, deixar a hipocrisia de lado é, sobretudo, admitir que a política de guerra contra as drogas que enfatiza a repressão fracassou. Fracassou nos Estados Unidos, tem fracassado por toda parte, inclusive no Brasil.
Antes de mais nada, que fique bem claro: defender a descriminalização das drogas não tem rigorosamente nada a ver com aceitar a legalização do roubo, do homicídio ou da pedofilia, como sustenta Mina Carakushansky em artigo publicado em O Globo (07/01/2002) com o título de Vamos legalizar o roubo?. Tampouco defender a descriminalização das drogas equivale a estimular seu uso ou disseminação.

Embora acredite, como John Stuart Mill há mais de 150 anos já afirmava, que o Estado só pode interferir na minha liberdade para impedir que eu faça mal a alguém, essa argumentação, freqüentemente, não encontra eco. A discussão sobre as drogas precisa de fatos e números. A defesa da descriminalização das drogas está carecendo de dados robustos para prosperar.

Vamos a fatos e números, muitos deles produzidos por estudos do The Lindesmith Center-Drug Policy Foundation, que merecem ser conhecidos. Nos Estados Unidos, a Guerra contra as Drogas vem consumindo recursos cada vez mais altos, crescendo ano a ano. Entre 1980 e 2000 o orçamento federal para o combate às drogas passou de 1 bilhão para 18.5 bilhões de dólares. Essa quantia é superior ao PIB de muitos países e, mesmo assim, as drogas ilícitas nunca estiveram tão baratas, tão puras e tão acessíveis. Estimativas conservadoras mostram que, nos Estados Unidos, o preço do grama de cocaína caiu de 191 para 44 dólares entre 1981 e 1998; o grama de heroína passou de 1.194 para 317 dólares no mesmo período. Enquanto isto, a pureza cresceu, passando de 60 para 66% no caso da cocaína e de 19 para 51% no caso da heroína, também entre 1981 e 1998.

Quanto à acessibilidade, pesquisa de 1999 indica que estudantes secundários, nos Estados Unidos, consideram fácil adquirir drogas ilícitas. 88% dos entrevistados disseram que é fácil comprar maconha e 47% afirmaram poder comprar cocaína sem dificuldades. Alguns estudantes admitiram que é mais fácil adquirir drogas ilícitas do que comprar bebidas alcoólicas, cuja venda é proibida para menores de 21 anos.

Em busca de mais números, analisemos a quantidade de mortes relacionadas ao uso de drogas lícitas e ilícitas. Anualmente, morrem, nos Estados Unidos, aproximadamente 500.000 pessoas em conseqüência do uso de drogas lícitas (400.000 pessoas têm mortes relacionados ao uso do tabaco e 100.000 morrem em conseqüência da ingestão de álcool) e apenas 20.000 mortes relacionam-se ao uso de drogas ilícitas.

Ora, dirão alguns, estes números não servem para condenar as drogas lícitas pois a quantidade de pessoas que usa álcool e tabaco é infinitamente maior, logo, o número de mortes deve ser, necessariamente, também maior.
No entanto, cálculos sobre o número de mortes por 100.000 usuários são esclarecedores. Somados os usuários de drogas lícitas (álcool e tabaco) e usuários de drogas ilícitas (neste caso, maconha, cocaína, crack e heroína) obtem-se o seguinte: 506 mortes por 100.000 usuários de drogas lícitas e 166 mortes por 100.000 usuários de drogas ilícitas. Ou seja, as drogas lícitas são muito mais letais.

Isto significa que a proibição das drogas não está baseada na racionalidade de impedir mortes. Se quisermos impedir mortes, comecemos por criminalizar o fumo e o álcool.

Mais fatos e números. Recente estudo realizado nos Estados Unidos mostrou que 36% de todos os presos condenados por crimes relacionados com drogas eram pequenos infratores, sem nenhum registro anterior de comportamento violento. Infelizmente, não temos pesquisa semelhante no Brasil, mas todos aqueles que lidam com o sistema penitenciário neste país sabem que a grande maioria de nosso presos, condenados por envolvimento com drogas, está longe de ser protagonista na estrutura do tráfico, muito menos são homens e mulheres violentos.

O mercado internacional das drogas ilícitas movimenta 400 bilhões de dólares por ano, o que significa 8% de todo o comércio que se faz no mundo, gerando lucros astronômicos, corrompendo polícia e políticos, provocando uma espiral de violência que tem atingido níveis assustadores em vários países, e está longe de ser derrotado através da repressão.

O Brasil é hoje exemplo no mundo quando se fala em política de combate à Aids. Isto foi resultado de campanhas corajosas e agressivas, ao longo das quais superamos preconceitos e enfrentamos interesses poderosos. Vamos abrir um debate sério sobre a descriminalização das drogas lembrando que através de campanhas educacionais, também corajosas e honestas, poderemos estar evitando que pessoas morram pelo abuso de drogas pesadas.

Não é com a repressão policial violenta, com gastos de somas fabulosas (que não temos!) ou com campanhas mentirosas que já não enganam ninguém, muito menos nossos jovens, que estaremos criando um mundo livre de drogas.

Muitas drogas ilícitas já foram legais no passado. Vamos ter que aprender a conviver com elas e partir para uma política consistente e conseqüente de redução dos danos das drogas pesadas. E, sobretudo, buscar uma legislação sobre o assunto que atenda as necessidades do país, não tema ousar e seja menos hipócrita.

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