O desespero decorrente da falta de políticas de segurança é campo fértil para o surgimento de idéias absurdas e irracionais, para a manipulação política e midiática, para a manifestação de afrontas aos mais elementares princípios democráticos. Não por acaso, propostas estapafúrdias e quase sempre autoritárias costumam surgir depois de alguma grande crise que revela a ineficácia dos métodos empregados correntemente para controlar a criminalidade e a violência. Instituir a pena de morte, proibir a imigração, limitar o acesso aos bairros “nobres” da cidade, revistar todos os moradores de favelas, colocar o Exército permanentemente nas ruas, apontar canhões para os morros, decretar estado de sítio e suspender direitos civis são alguns exemplos do que pode gerar o reconhecimento da impotência, alimentado pelo preconceito que desagua na discriminação.
Diante das cenas de barbárie que o Rio de Janeiro conheceu na Semana Santa, com a guerra do tráfico na Rocinha, destampa-se, mais uma vez, o baú da insanidade e ativa-se o arsenal de propostas abstrusas, que surgem e desaparecem como improvisos inconseqüentes, entre as quais a da construção de um muro em volta das favelas. Tecnicamente, a eficácia dessa medida para limitar o movimento dos traficantes e impedir que avancem as ocupações irregulares parece no mínimo duvidosa. A não ser que se crie, literalmente, um gueto e que se impeça a livre circulação dos moradores e moradoras, é difícil imaginar que o cercamento faça retroceder o tráfico e impeça a ação de criminosos, o que até hoje não se conseguiu nem mesmo nas penitenciárias ditas de segurança máxima, onde, além de muros, há guardas, guaritas, portas de ferro e bloqueadores de celulares.
Mas, se são muito discutíveis os efeitos práticos da medida, sua premissa é cristalina: trata-se de separar, dividir, segregar, esconder. Trata-se de esculpir em concreto armado as fronteiras da cidade partida por uma vergonhosa desigualdade social, na ilusão de aumentar a segurança levantando monumentos explícitos ao apartheid.
Muros, grades, trancas, câmeras, blindagens e um exército de vigilantes particulares, recursos que há muito vêm sendo acionados pela população mais rica, já se mostraram insuficientes para contrabalançar a deficiência na provisão de segurança pública por parte do Estado — aí incluídos governos federal, estadual e municipal. Agora, ao invés de mudar as políticas de segurança, cujos métodos comprovaram-se ineficazes, propõe-se o deslocamento dos muros para as áreas de favela, como que admitindo-se de vez a incapacidade do Estado para enfrentar o problema.
Na verdade, a mensagem de fundo é ainda mais surrealista: não se mexe em time que está perdendo. Nossa política de segurança falhou? Isolem-se as favelas. Policiais têm matado e morrido mais a cada ano, sem que os índices de criminalidade recuem? Chame-se o Exército. A população está apavorada? Construa-se um muro. Não conseguimos evitar a ocupação irregular de matas e encostas? Levante-se uma cerca. Não somos capazes de disputar com o tráfico a sorte dos meninos pobres, oferecendo-lhes educação, trabalho, lazer e autoestima? Decrete-se estado de defesa.
Infelizmente, os efeitos simbólicos de tais artimanhas são, a curto prazo, eficazes: mobilizam, junto com o medo, os substratos mais arcaicos da nossa desigualdade social, não por acaso uma das maiores do mundo. Acalmam temporariamente o pânico invocando a velha idéia de cordões sanitários para conter os efeitos mais perversos dessa desigualdade, que pode assim continuar naturalizada. Propiciam a catarse do despotismo endêmico em amplos segmentos da população, normalmente contido por um frágil verniz democrático. Reafirmam que é possível viver seguros nas áreas “nobres” isolando, apartando e escondendo as áreas onde supostamente “mora o perigo”. Até que uma nova crise derrube esse muro de cartas e mostre mais uma vez que, sem políticas públicas, ninguém está a salvo do perigo. Que ele mora em toda parte. Que não há nem haverá segurança só para alguns.