O bem que paga o mal

As notícias sobre injúrias raciais, como a que afetou a jovem Valentina, filha do ator Bruno Gagliasso, entristecem todos que gostariam de pensar o Brasil como um país capaz de superar as sombras do passado escravagista. Mas o tempo histórico é mais extenso que as curtas biografias, e a sociedade igualitária com que sonhamos está longe do nosso alcance.

Saber que uma das autoras da ofensa era uma jovem negra amplifica a dimensão do drama: o ódio dirigido ao outro como projeção do ódio a si mesma ou à condição de vulnerabilidade ao ódio alheio. Nesse percurso, é compreensível que os pais da menina ofendida expressem o desejo de punição, afirmando que culpados devem pagar pelo malfeito. O ataque a alguém que amamos é doloroso, e a punição parece ser o único remédio com poder de cicatrização.

Mas será essa a única resposta possível? Apostando na ideia de que “o mal com o mal se paga”, estaremos produzindo benefícios para ofendidos, ofensores e a sociedade? A punição conseguirá modificar percepções e prevenir delitos, pela demonstração de que quem ofende pagará de alguma forma, com trabalho, com direitos, com a própria liberdade ou com medidas restritivas, no caso de adolescentes?

Quem sabe essa não seria a oportunidade para experimentar uma mudança na nossa maneira tão ineficaz de lidar com atos ofensivos, aplicando-se a Justiça Restaurativa e seu princípio de que o mal com um bem se paga?

Evidentemente, tais processos são voluntários e dependem do interesse e das possibilidades individuais, que precisam ser respeitadas. Mas e se, ao invés de pagar com punições, fosse possível aplicar outra lógica? E se a autora das ofensas tivesse, por exemplo, a chance de saber dos ofendidos o que seus atos provocaram e fosse ouvida a respeito das condições que a levaram a praticá-los? E se a partir desse diálogo fosse possível alcançar as entranhas do racismo? A Justiça Restaurativa converte a culpa em responsabilização. Não por infligir aos infratores um sofrimento correspondente ao que eles produziram, mas por deslocar o foco do delito ao campo da reparação; por gerar reconhecimentos; engendrar obrigações em relação ao futuro, promovendo engajamento de vítimas e de ofensores na busca compartilhada por saídas viáveis.

As práticas restaurativas têm trazido satisfação para vítimas de ofensas físicas e morais, ao mesmo tempo em que produzem mudanças consistentes no comportamento de quem as provocou. Isso é possível graças à compreensão de que o crime não viola bens jurídicos abstratos, como as leis do Estado, e sim pessoas e relações. Atenta-se para as necessidades de quem sofreu os danos, sem desconsiderar quem os praticou. Dessa forma, os ofensores podem se envolver na reparação dos atos danosos, que os ajudarão a sustentar os compromissos assumidos. Para qualquer tipo de crime, o tratamento mais adequado dependerá das múltiplas variáveis de cada caso, mas o importante é lembrarmos que, mesmo no terreno da Justiça, já existem caminhos diferenciados.

Barbara Musumeci Mourão é pesquisadora do Centro de Estudos de Segurança e Cidadania da Universidade Candido Mendes

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