Onde começa a paz?

Pesquisa realizada, recentemente, pelo CESeC (Centro de Estudos de Segurança e Cidadania da Universidade Cândido Mendes), nas prisões femininas do estado do Rio, revelou um cenário assustador, em que a violência é a principal protagonista. Entre outras coisas, o resultado do trabalho nos leva a refletir sobre o papel das nossas instituições na reprodução da violência e sobre o sentido das ações que têm sido adotadas para reduzí -la.

As formas de violência são muitas, sabemos, assim como suas vítimas e autores(as). Suas origens são variadas e complexas, não resta dúvida. As soluções difíceis, mas possíveis – é bom lembrar, para que jamais consideremos naturais e inevitáveis os homicídios, torturas, agressões, ameaças e todas as formas de desrespeito aos direitos humanos de homens e mulheres, adultos e crianças, cidadãos e cidadãs livres ou encarcerados(as).

O que se vê nas ruas, nas delegacias, nos presídios, nos bares e lares violentos tem raízes. Muitas vezes essas raízes são plantadas na família de origem, ganham consistência no convívio com a comunidade e se consolidam, de forma quase irreversível, nas instituições ligadas ao Sistema de Justiça Criminal. As trajetórias de vida das mulheres presas no estado do Rio são um retrato tristemente expressivo desse encadeamento de violências que se reforçam mutuamente: mais de 95% das mulheres que cumprem pena no Sistema Penitenciário do estado foram vítimas de violência antes da prisão, em pelo menos uma das seguintes situações: a) na infância, por parte dos responsáveis; b) na vida adulta, por parte dos maridos/companheiros e c) quando foram presas, por parte de policiais civis, militares ou federais; 75% delas sofreram violência em pelo menos duas dessas situações e 35% nas três circunstâncias. Mais da metade das presas experimentou a violência física, psicológica ou sexual tanto na infância quanto no casamento. Nas mãos da polícia, 68% sofreram espancamentos, choques elétricos, xingamentos, humilhações, abuso sexual, ameaças de morte, afogamento ou sufocação. Nas prisões, 9% disseram ter sido espancadas, 7,3% torturadas e 17,4% ameaçadas, embora esses últimos percentuais possam estar subdimensionados, em função do temor das presas de relatar maus-tratos vividos na própria instituição em que se encontram. A violência sofrida de forma indireta pelas mulheres presas é igualmente assustadora: um terço delas, teve um ou mais companheiros assassinados; 20,6% mencionaram pelo menos um irmão morto por homicídio e 9,5% perderam um ou mais irmãos, além de um ou mais companheiros vítimas de assassinato.

Não se pode deduzir desses dados, obviamente, que a violência sofrida induza à criminalidade ou seja responsável pelo ingresso das mulheres infratoras no sistema penal. O que os números e a observação das condições carcerárias sugerem é que a prisão apenas reitera, sem alterar minimamente, o ciclo de violências que começa na infância, se reproduz no casamento, se desdobra na ação da polícia, completando-se nas penitenciárias, para reiniciar, provavelmente, na vida das futuras egressas. É a violência como vocabulário de histórias de vida tornando-se elemento constitutivo da comunicação humana e sendo institucionalizada no interior de organismos que deveriam eliminá-la.

A violência tem sido definida por ações ou omissões que infligem dor e sofrimento físico ou psíquico. Mas ela é também uma linguagem. Uma forma de comunicação, que acaba se instalando entre certos grupos pela força do hábito que naturaliza e pelo desconhecimento de uma outra gramática que enfatize a capacidade de ouvir, de respeitar, de compartilhar, de aceitar diferenças e de expressar positivamente os sentimentos. As crianças aprendem o be-a-bá da violência com os gritos, empurrões e castigos impostos pelos pais, por perda da razão, ou por razões supostamente pedagógicas, não importa. Todos freqüentando perigosamente as fronteiras que mais conectam do que separam punição e violência. Muitas mulheres, por sua vez, conhecem no casamento o lado sombrio da intimidade: o desejo de certos homens de transformá-las em objeto de seu poder e controle absolutos. Não se trata de um privilégio exclusivamente masculino, é claro. Existem, sem dúvida, mulheres bélicas, dominadoras e possessivas. Da mesma forma, existem os casais que, em condições de igualdade de poder, transformam a vida conjugal em um permanente campo de batalhas. Entretanto, as motivações dos homens e mulheres violentos(as) são distintas, assim como são diferentes suas percepções sobre a violência sofrida ou praticada, os recursos de que se valem e as reações que a violência provoca nas vítimas, nos que lhes são próximos e na comunidade. Não se pode esquecer que, nas chamadas sociedades ocidentais, as subjetividades masculina e feminina são formadas com base em padrões legais e culturais que, no passado, endossavam explicitamente o controle e a punição das mulheres pelos homens e hoje, pela naturalização conivente de grande parte da sociedade, ainda lhes conferem uma certa legitimidade. Mas o que chama a atenção, quando se trata de relações familiares violentas é que tanto vítimas quanto agressores parecem mergulhados e aprisionados em uma lógica que não conhece escapatória. Acabam, eles próprios, por falta de alternativa visível, transformando a violência sofrida e praticada em sua segunda natureza. Um grande desafio e uma responsabilidade de quem pretende trabalhar em favor da redução da violência é, portanto, romper radicalmente com essa lógica. É contribuir para restaurar direitos, atribuir responsabilidades e promover mudanças de normas e comportamentos, sem alimentar a matriz de ódios, antagonismos, confrontos e acusações, que está na orígem do mal que se quer erradicar. É desenvolver iniciativas em que tanto a indiferença naturalizante, quanto o espírito meramente punitivo, também ele prisioneiro da linguagem da violência, sejam substituídos por intervenções proativas, movidas pelo propósito de transformar os padrões legitimadores do comportamento violento em exercício de respeito e de paz.

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