Há um disseminado descaso pela investigação de desaparecimentos, que não é considerada ‘verdadeiro trabalho de polícia’, mas um problema a ser solucionado no âmbito familiar ou por órgãos de assistência social
No estado do Rio de Janeiro, 13 pessoas, em média, desaparecem a cada dia. Nos últimos 10 anos, o estado acumulou 50 mil registros de pessoas desaparecidas. Mas esses números não são suficientes para dimensionar a negligência enfrentada por famílias de pessoas desaparecidas, principalmente negras e pobres, que enfrentam uma série de falhas nos atendimentos e investigações. Para se pensar política pública também é preciso conhecer, por meio de uma abordagem qualitativa, as dinâmicas, relações, percepções e experiências que cercam esse problema e que nem sempre são captáveis numericamente.
A pesquisa “Teia de ausências: o percurso institucional dos familiares de pessoas desaparecidas no estado do Rio de Janeiro”, do CESec (Centro de Estudos de Segurança e Cidadania), adota essa perspectiva para descortinar uma dimensão quase sempre oculta sob os dados oficiais: o difícil e solitário caminho dos familiares de desaparecidos em busca de apoio das instituições que se ocupam – ou deveriam ocupar-se – de prevenir e solucionar o problema. Entrevistas em profundidade com mães de pessoas desaparecidas e também com agentes públicos de diversos órgãos permitiram constatar que esse caminho é feito de uma série de vazios.
Para qualquer um, de qualquer raça ou classe, é dramática a experiência de buscar o paradeiro de alguém próximo, mas para famílias social, racial e economicamente desfavorecidas o caminho se afigura ainda mais árduo e os recursos institucionais disponíveis, muito mais escassos. O sofrimento começa no registro de ocorrência: é comum que policiais civis de delegacias distritais se recusem a fazê-lo ou tentem adiá-lo, ignorando a legislação que obriga o início imediato das buscas. Há um disseminado descaso pela investigação de desaparecimentos, que não é considerada “verdadeiro trabalho de polícia”, mas um problema a ser solucionado no âmbito familiar ou por órgãos de assistência social.
Preconceitos sociais e raciais também marcam o atendimento nas delegacias. Se uma mãe negra procura pelo filho adolescente, tem grande chance de ouvir dos policiais que ele “deve estar na boca” ou então morto. Se procura pela filha, que ela “deve estar no baile” ou “fugiu com o namorado”.
Há uma única unidade policial especializada, com agentes treinados, em todo o estado do Rio: a DDPA (Delegacia de Descoberta de Paradeiros), que se localiza na capital fluminense, em área próxima do centro da cidade, embora a maior incidência de desaparecimentos esteja na zona oeste, na Baixada e na região Niterói-São Gonçalo. A DDPA só investiga os casos que ocorrem no município do Rio. No resto da região metropolitana, quem se ocupa do assunto são delegacias de homicídios e, no resto do estado, as delegacias comuns (distritais).
Órgãos públicos que prestam apoio psicossocial ou jurídico aos familiares – como o Ministério Público, a Defensoria Pública, a Superintendência de Prevenção ao Desaparecimento e a Fundação da Criança e do Adolescente – também estão concentrados no centro e na zona sul da capital, longe das áreas de moradia da população que mais necessita desses serviços.
Há mães pobres que perdem seus empregos ou são abandonadas pelos companheiros por se dedicarem intensamente à busca dos filhos desaparecidos. Muitas desenvolvem transtornos psíquicos, sobretudo depressão. A maioria nem chega a saber que há serviços públicos de apoio e, mesmo entre as que sabem, poucas podem custear sucessivos deslocamentos até a sede dos referidos órgãos.
Assim, a busca de ajuda institucional para localizar pessoas desaparecidas enreda os familiares, sobretudo se negros e pobres, num percurso em que se vai tecendo uma trama de muitas outras ausências: falta de atendimento digno e tecnicamente correto nas delegacias não especializadas; falta de buscas e investigações eficientes; falta de assistência psicossocial; falta de integração de esforços e informações; falta de capilaridade dos órgãos e dos poucos serviços disponíveis; falta de aplicação na prática de medidas legais aprovadas; falta de cumprimento de promessas políticas, como a da abertura de novas delegacias especializadas fora da capital.
Para preencher parte desse vazio, organizações e coletivos autônomos de mães e familiares de desaparecidos têm buscado, no Rio de Janeiro, formas conjuntas de mobilização, pressão e comunicação, além de fornecimento de apoio técnico e econômico aos familiares, e da construção de redes de profissionais voluntários para prestar assistência psicológica. A participação de lideranças dessas organizações no debate público, com a força que a experiência própria transmite, tem sido fundamental para explicitar a teia de ausências que cerca o tratamento do tema e cobrar do Estado políticas efetivas para lidar com os casos de desaparecimento.
Múltiplas dinâmicas e múltiplas vulnerabilidades socioeconômicas estão na base do gigantesco número de pessoas desaparecidas todos os anos: conflitos familiares, disputas territoriais, crimes e violências de diversos tipos, desemprego e fraca assistência à saúde mental, para citar apenas algumas. Uma rede integrada e eficiente de registro, investigação e atendimento às necessidades dos familiares de desaparecidos – algo que só conseguimos a partir de um processo de escuta qualitativa – não resolveria por si mesma os problemas sociais e de segurança pública que estão na base dos mais de 5.000 casos registrados por ano. Mas decerto aumentaria a capacidade de resolução desses casos e de suporte às pessoas negras e pobres que têm de enfrentar a angustiante experiência de buscar alguém desaparecido.
–
* Paula Napolião é antropóloga e pesquisadora do Centro de Estudos de Segurança e Cidadania.
*Giulia Castro é assistente social e pesquisadora do Centro de Estudos de Segurança e Cidadania.