Tiroteios e mortes: velhas novidades

FOTO: RICARDO MORAES/REUTERS

O Rio precisa de políticas que coloquem a vida em primeiro lugar. A intervenção foi uma chance perdida de estabelecer essa prioridade e mudar o contexto da segurança pública no estado

Nos últimos 35 anos, os momentos em que a violência mais se agravou no Rio de Janeiro foram aqueles em que as políticas de segurança privilegiaram os confrontos. Foi assim, por exemplo, na época da “gratificação faroeste”, bonificação oferecida por atos de bravura de policiais, entre 1995 e 1998.

E não foi diferente durante a intervenção federal na segurança pública sob a qual o estado do Rio de Janeiro viveu de 16 de fevereiro de 2018 até 31 de dezembro do mesmo ano.

Em 2018, as mortes decorrentes da atuação de policiais chegaram a 1.532, um recorde histórico. Uma análise mês a mês do período de intervenção federal no Rio de Janeiro, de fevereiro a dezembro de 2018, mostra que, naquele ano de tantas vítimas fatais em razão de ações das polícias, as mortes violentas se mantiveram nos níveis altíssimos do ano anterior: mais de 6.000 assassinatos.

Sob a intervenção federal, a segurança pública no Rio de Janeiro baseou-se em táticas ultrapassadas e arcaicas, em vez das reformas estruturais e políticas inovadoras necessárias. Afinal, o que ficou da intervenção federal? Quais são as perspectivas para o Rio? Mais confrontos entre criminosos e policiais, mais tiroteios e um estado mais violento?

Durante os dez meses em que o Rio esteve sob intervenção federal, os tiroteios aumentaram. O laboratório de dados Fogo Cruzado registrou mais de 8.600 trocas de tiros – 56% acima dos disparos contabilizados no mesmo período em 2017. As 711 operações policiais monitoradas em 2018 contribuíram para a constante fuzilaria, como mostram os números: quanto mais operações, como ocorreram em agosto, mais tiroteios, balas perdidas e mortes decorrentes de intervenção policial.

Além disso, a população do Rio conviveu com crimes traumáticos, como o assassinato de Marielle Franco e numerosas chacinas, algumas delas atribuídas à própria polícia, como as ocorridas na Rocinha, Cidade de Deus, Maré e Complexo da Penha. Até o encerramento da intervenção, esses crimes ficaram sem elucidação e sem uma palavra oficial de esclarecimento dos militares que comandaram a segurança pública no estado.

A INTERVENÇÃO FEDERAL NA SEGURANÇA DO RIO DE JANEIRO JÁ COMEÇOU ARCAICA. VENDEU COMO NOVAS VELHAS SOLUÇÕES. CONFIGUROU-SE COMO UM MODELO INTERVENCIONISTA, CUSTOSO E INSUSTENTÁVEL A LONGO PRAZO

Não houve, ainda, redução no número de regiões dominadas por facções do crime e grupos de milícia. Atualmente, não só as favelas cariocas vivem sob o jugo de grupos armados ilegais. Essa prática se expandiu para bairros da Baixada Fluminense, São Gonçalo, Região dos Lagos e áreas do “interior” do estado, como Costa Verde e outras.

Não foram feitos investimentos significativos de modernização da gestão das polícias. A Polícia Militar do Estado do Rio de Janeiro continua a atuar em quartéis ultrapassados e a usar boletins de ocorrências (os BOPM) preenchidos em papel. Não há sistemas digitais de controle da distribuição de armamentos e munições e de monitoramento das viaturas.

Já a Polícia Civil do estado não criou uma cultura investigativa e de inteligência para suas delegacias distritais e amarga uma das menores taxas de elucidação de homicídios do Brasil. As unidades de perícia, como os Institutos Médicos Legais, estão sucateadas.

O GIF (Gabinete de Intervenção Federal) não implantou, tampouco, sistemas permanentes de integração entre Polícia Militar, Polícia Civil, Polícia Rodoviária Federal e Guarda Municipal. Esse projeto não foi objeto dos investimentos no pacote de R$ 1,2 bilhão concedido pelo governo federal à segurança do estado. Os gastos se concentraram em aquisição de armas, munições, coletes e viaturas.

Ao mesmo tempo, práticas violentas da polícia fluminense continuaram e se agravaram. A intervenção levou ao extremo políticas que o Rio de Janeiro já conhecia: a abordagem dos problemas de  violência e criminalidade a partir de uma lógica de guerra, baseada no uso de tropas de combate e grandes operações.

É possível reduzir a violência e as mortes no Rio. Para isso, é necessário: a) priorizar a elucidação de homicídios e a prisão de grupos de extermínio; b) controlar o ingresso de armas e munições antes que cheguem às quadrilhas; c) reduzir drasticamente os tiroteios nos bairros, começando pela orientação de que a polícia não faça operações pouco efetivas e letais em áreas populares que colocam em risco milhares de vidas; d) alterar a resposta automática de criminosos e policiais, que atiram “preventivamente” e perguntam depois; e) realizar campanhas de desarmamento entre jovens em escolas, igrejas e centros culturais de periferia.

Nenhum desses objetivos foi prioridade durante a intervenção no estado. A intervenção federal na segurança do Rio de Janeiro já começou arcaica. Vendeu como novas velhas soluções. Configurou-se como um modelo intervencionista, custoso e insustentável a longo prazo, que mostrou-se pouco efetivo diante de estruturas policiais locais que necessitam de reformas estruturais, combate à corrupção e choque de eficiência em inteligência.

Um modelo que não deve ser copiado em situações de crise de criminalidade no Brasil. O Rio precisa de políticas que coloquem a vida em primeiro lugar. A intervenção foi uma chance perdida de estabelecer essa prioridade e mudar o contexto da segurança pública no estado.


Silvia Ramos é cientista social e coordenadora do Observatório da Intervenção e do Centro de Estudos de Segurança e Cidadania da Universidade Candido Mendes (CESeC/UCAM)

Anabela Paiva é jornalista e coordenadora de Comunicação do Observatório da Intervenção

Pablo Nunes é doutorando em Ciência Política pelo IESP-UERJ,  coordenador de Pesquisa do Observatório da Intervenção

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