Julita Lemgruber a Bia Barbosa, sobre milícias no Rio de Janeiro

 

“Governo do Rio não fez nada para impedir milícias”

Para Diretora do Centro de Estudos de Segurança e Cidadania, ex-diretora do sistema penitenciário do Rio, as milícias, tão criminosas quanto o tráfico, avançaram diante do descaso do governo estadual.

 

SÃO PAULO – Desde o último final de semana, o Rio de Janeiro enfrenta uma nova ameaça na quase permanente crise da segurança pública no Estado. As chamadas milícias paraestatais – que segundo a Subsecretaria de Inteligência da Secretaria de Segurança Pública já controlam 92 favelas do Rio – entraram em confronto armado com o tráfico, deixando cinco mortos e 16 feridos. A história se desenrolou com o afastamento do inspetor Félix dos Santos Tostes, assessor do gabinete da Polícia Civil, acusado de ligação com a milícia que controla hoje a favela Rio das Pedras. O governo estadual anunciou que retomará 167 processos administrativos sobre desvios de conduta de policiais que estavam parados na corregedoria, e o deputado Marcelo Freixo, do PSOL, propôs a criação de uma CPI (Comissão Parlamentar de Inquérito) para investigar a ação e composição das milícias. Como informou o jornal O Globo, o Disque-Denúncia fluminense recebeu este ano 223 ligações com informações sobre a ligação de bombeiros e de policiais militares e civis com esses grupos, que após expulsar traficantes das comunidades, passam a cobrar por uma suposta segurança da população. A última novidade foi a instalação de um portão em uma das entradas da Vila Joaniza, antigo Morro do Barbante, na Ilha do Governador. Se foi obra da milícia que controla a região ainda não está claro.

Na avaliação da socióloga Julita Lemgruber, diretora do Centro de Estudos de Segurança e Cidadania da Universidade Cândido Mendes, no Rio de Janeiro, ex-ouvidora de polícia e ex-diretora do sistema penitenciário do Estado, as milícias são tão criminosas quanto o crime organizado; um fenômeno que cresceu e se intensificou nos últimos anos em decorrência da negligência e ausência do Estado nessas comunidades. Para ela, historicamente, o Rio de Janeiro desenvolveu uma política antiquada de policiamento, e este confronto, que coloca a população ainda mais em risco, é somente o resultado mais recente deste modelo segurança pública. “Claramente o governo anterior conviveu com esta questão e não fez rigorosamente nada para impedir a ação das milícias”, disse Julita, em entrevista exclusiva à Carta Maior.

Confira abaixo os principais trechos desta conversa.

 

Carta Maior – O enfrentamento armado entre milícias e crime organizado veio à tona neste final de semana. No que a atuação desses grupos se difere?

Julita Lemgruber – Embora a ação das milícias esteja hoje sendo olhada como um fenômeno relativamente recente, ele não é. Antes, esses grupos eram conhecidos como “polícia mineira”. A polícia mineira de Rio das Pedras, por exemplo, que teve seu chefe preso nos últimos dias, existe há mais de 30 anos. Então isso não é novo, e as autoridades da segurança pública do Rio de Janeiro sempre conviveram com isso. O que é recente é o crescimento do número de milícias e dos territórios por elas controlados. Comparando milícias e crime organizado, ambos são grupos fortemente armados defendendo um território, sem a legitimidade do poder do Estado. Ambos são, então, criminosos.

 

CM – Podemos dizer que a origem desses grupos também tem causas semelhantes, como a ausência do Estado nessas comunidades?

JL – Sem dúvida alguma. Tanto o tráfico quanto as milícias conseguem ocupar territórios e, de uma forma ou outra, defendê-los porque o Estado não está lá cumprindo seu papel.

 

CM – As informações apontam para uma participação efetiva de agentes e ex-agentes do Estado na composição das milícias. Há um complicador maior neste caso?

JL – Sim. Em relação ao tráfico, a polícia pode dar proteção e, eventualmente, há policiais parceiros do tráfico. Mas esses grupos são constituídos em sua grande parte por policiais civis, militares, agentes penitenciários e bombeiros. É evidente que isso torna o quadro muito mais preocupante. Mas, neste momento, é importante ter clareza de que, na sua origem, alguns desses grupos eram constituídos por policiais que se sentiam ameaçados pelo tráfico. Essa é a grande questão. Muitos policiais moram nas favelas; há inúmeros casos de homens que têm que secar a farda atrás da geladeira, cujos vizinhos não podem saber que ele é policial, que sai de casa com a farda na sacola e a identidade na sola do sapato. Alguns desses grupos surgiram, então, como uma reação de sobrevivência, formados por policiais que moravam em favelas dominadas pelo tráfico, muitos deles ameaçados inclusive de expulsão. A imprensa já mostrou reportagens do tráfico expulsando policiais e a PM indo lá com o carro da polícia pra ajudar a fazer a mudança da família. É o Estado assumindo que não pode dar segurança para o homem que o representa naquela favela.

 

CM – Mas logo esses grupos mudam de caráter.

JL – Exato. Logo isso se transforma numa fonte de rendimentos extras muito atrativos. Eles vendem a segurança e passam a cobrar dos comerciantes, de pessoas que alugam casas na favela, cobram o tal do gato Net, agora fecharam o portão de acesso. Se transformaram muito rapidamente. É interessante, por exemplo, traçar um paralelo com a origem dos comandos no sistema penitenciário. Quando o Comando Vermelho foi criado na Ilha Grande, tinha intuitos muito nobres. Havia uma caixinha, todos os presos tinham que contribuir, pra ajudar as famílias de presos que não tinham condições. Era aquela visão coletiva, dos presos políticos. Rapidamente, mesmo na Ilha Grande, eles passaram a usar a caixinha pra comprar a guarda para fugir da ilha. Ou seja, muitos desses movimentos surgem com objetivos nobres e rapidamente são desfigurados.

 

CM – Em termos de territórios controlados e do envolvimento do alto escalão da polícia nas milícias, não houve uma intensificação recente?

JL – Assim como policiais viram no tráfico uma fonte adicional de recursos, esses grupos viram que vender segurança era atrativo. Aí isso chegou ao alto escalão. Claramente, o governo anterior conviveu com esta questão e não fez rigorosamente nada para impedir a ação das milícias. Isso ficou muito claro. O que estamos vendo agora é o contrário: o governador e o secretário de Segurança Pública falando claramente que não vão conviver com as milícias, que elas são tão criminosas quanto o tráfico. Esse é o dado novo.

 

CM – O governador do Rio, Sérgio Cabral, falou de uma retomada de processos de má conduta da polícia e a Assembléia Legislativa aponta para a possibilidade de abertura de uma CPI. Esses mecanismos podem ter resultados?

JL – O deputado Marcelo Freixo já pediu a criação de uma CPI, e agora é preciso apoio para que ela efetivamente se instaure, porque pode haver uma reação de deputados. Sabe-se que alguns deputados foram muito votados em áreas controladas por milícias, então é evidente que deve haver interesses na Assembléia para que essa CPI não se crie. Seria importante porque uma CPI chama atenção, ocupa espaço na mídia, joga luz sobre um problema que outros interesses tentam impedir que se clareie. A CPI tem este papel simbólico e emblemático. Também é válido que o governo esteja desenterrando estes processos disciplinares. Mas quando surge essa discussão de corrupção e de ilegalidade da ação da polícia, insisto que, enquanto não houver neste país um órgão de controle externo realmente independente e autônomo, vamos caminhar pouco nesta luta.

 

CM – As ouvidorias de polícia teriam um papel central neste processo?

JL – Exatamente. Temos que abrir essa discussão com a sociedade. As ouvidorias precisam ter o poder de investigar. Elas são um fenômeno de meados dos anos 90 e tiveram momentos mais combativos, mas, ao longo dos últimos anos, se tornaram quase omissas. O problema não é tanto de falta de vontade dos ouvidores, mas de falta de instrumentos reais para investigar, para que não fiquem reféns das corregedorias. Senão, são meras repassadoras de denúncias. Sempre cito o caso da Irlanda do Norte, que é o que há de melhor em controle externo no mundo hoje. É uma ouvidoria poderosa, com cerca de 100 investigadores, todos com poder de polícia. Lá é a ouvidoria que investiga quando há alguma ilegalidade grave. A polícia não pode nem tocar neste assunto. Então temos que abrir uma discussão com a sociedade sobre que tipo de controle externo a gente quer. Na verdade, o Ministério Público, constitucionalmente, é o responsável pelo controle externo. Mas na realidade o MP faz o controle do inquérito. Não vai além disso.

 

CM – Nos últimos dias, se levantou a possibilidade de a Polícia Federal investigar denúncias de corrupção das polícias estaduais. Qual sua opinião sobre isso?

JL – Politicamente, é muito delicado o governo federal entrar nas polícias estaduais. Nos Estados Unidos, o governo federal possui um órgão dentro do Ministério da Justiça – a Divisão de Direitos Civis – que, legalmente, pode investigar policiais estaduais nos casos de graves ilegalidades em que fica patente que o governo local ou estadual não tomou as providências necessárias. Aqui é diferente. Então é complicado dizer que a Polícia Federal vai fazer isso. Pode ser uma boa idéia, mas tem que ficar muito claro em que casos isso pode ocorrer e que instrumentos serão esses. E avaliar o momento de transição de governo pelo qual estamos passando.

 

CM – Como fica a população neste momento, quando grupos que podiam ter princípios até nobres e trazer uma suposta segurança agora passam a entrar em confronto com o tráfico?

JL – O tiroteio aumentou. Aumentou o nível e a intensidade da troca de tiros. Infelizmente, ao fim e ao cabo, é isso que vai resultar dessas guerras. Certamente, essas milícias vão começar a disputar espaço entre elas, assim como o tráfico faz com as favelas mais lucrativas. Do ponto de vista do que podem render para essas milícias, as favelas mais lucrativas também começarão a ser disputadas. A grande pergunta que fica no ar é: quando as milícias vão começar a vender drogas?

 

CM – Em paralelo a esta questão, a Força de Segurança Nacional está sendo treinada para atuar no Rio de Janeiro. Quando essa ação se efetivar, este pode ser um reforço positivo?

JL – Se pensarmos em uma atuação pontual e em um grupo bastante qualificado, que vai operar a partir de um mapeamento preliminar e de dados reunidos pela área de inteligência, a Força de Segurança Nacional pode dar uma contribuição importante. É muito cedo pra sair jogando pedra e dizer que ela não vai servir pra nada, que tem um número muito pequeno de homens. Não adianta. A polícia militar no Rio de Janeiro tem 40 mil homens e o que adianta? São 40 mil homens mal treinados, mal pagos e que operam a partir de uma gestão pouco eficaz, que a gente espera que mude agora. Nos últimos anos, vimos uma polícia operando de forma antiquada. A gente não vê gestão moderna de polícia. Não vemos um mapeamento constante de como está se distribuindo a criminalidade. Isso tem que se fazer diariamente: estudar a incidência de crimes, pra ver como se vai distribuir o efetivo. Podemos dobrar o efetivo que não resolveremos o problema. A PM de São Paulo tem mais de 80 mil homens e isso não adiantou para conter os ataques do PCC, porque a área de inteligência não funcionou. Essas são áreas que têm que funcionar muito bem integradas, mas o que vemos hoje é cada um querendo esconder uma ação do outro.

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