Entrevista com Julita Lemgruber sobre mulheres encarceradas

A socióloga Julita Lemgruber | Foto: Agência O Globo

Julita Lemgruber: ‘Não é esperado que uma mulher cometa um crime. É esperado que ela seja uma mãe dedicada e carinhosa’

Socióloga foi a primeira mulher a assumir o Departamento do Sistema Penitenciário do Rio de Janeiro

RIO — A socióloga Julita Lemgruber pisou num presídio pela primeira vez em 1976, quando havia apenas 9.300 detentos no Rio de Janeiro. A partir daí começou sua longa história em unidades prisionais. Acompanhou de perto a rotina de mulheres na penitenciária feminina Talavera Bruce, em Bangu. Em 1991, foi a primeira mulher a assumir o Departamento do Sistema Penitenciário do Rio de Janeiro. Hoje, Julita é uma das coordenadoras do Centro de Estudos de Segurança e Cidadania da Universidade Cândido Mendes e afirma que a mulher criminosa é tratada com muito mais rigor que os homens: “Ela rompe com a ordem de uma sociedade que espera que ela seja mãe, cuide da casa e ainda trabalhe fora”, diz. “E, quando elas são presas, as famílias são destroçadas”.

O Jornal O Globo produziu uma série documental sobre a situação do sistema prisional brasileiro, passando por assuntos como a superlotação carcerária, a violência dentro dos presídios, a solidão das mulheres, entre outros temas.

O GLOBO: Qual o perfil da mulher presa no Brasil?  

JULITA LEMGRUBER: São mulheres acusadas de tráfico de drogas. Mulheres que, em geral, estavam tentando levar a droga de um estado para o outro ou levando drogas para os seus familiares presos, maridos, irmãos, filhos…. Quando a gente pensa no perfil dessa mulher que está presa por tráfico de drogas… É alguém realmente perigoso? É alguém que faz parte das articulações do mundo do crime? Claro que não! É triste porque são mulheres que, em geral, são chefes de família. Há inúmeras pesquisas que mostram isso. É delas que depende o sustento da família. E, quando essa mulher é presa, as famílias são destroçadas. É pequeno o número de casos de mulheres que realmente conseguem algum parente para ficar com a criança. Muitas crianças vão para abrigos.

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As mulheres são abandonadas na prisão?

Você vai a uma prisão masculina e vê filas enormes. Aquelas mulheres são as mães, as companheiras e as filhas carregando sacolas. Carregando alguma coisa gostosa para o seu companheiro, para o seu pai, para comerem naquele momento da visita. Você vai à prisão de mulheres e as filas são pequenas, não tem ninguém carregando sacola. São alguns familiares e, muito raramente, os maridos.  Então podemos dizer que as mulheres são abandonadas quando presas. Isso é muito forte na sociedade. A visita íntima, por exemplo. Esse privilégio nas unidades masculinas, em que as esposas correm com a papelada para provar que possuem união estável com os presos, raramente ocorre nas prisões femininas. Porque os homens têm vergonha. Se você conversa com um agente penitenciário, ele vai dizer que prefere dez vezes trabalhar em prisão de homem do que em prisão feminina. Porque não se espera que as mulheres rompam a norma. Essas mulheres que ousaram romper normas são muito perturbadoras sob vários pontos de vista.

“Você vai a uma prisão masculina e você vê filas enormes. Você vai à prisão de mulheres e as filas são pequenas, não tem ninguém carregando sacola”

JULITA LEMGRUBER
Socióloga

Por que isso acontece?  

A mulher presa, a mulher criminosa, ela é vista como alguém que transgrediu a lei em dois níveis. Ela transgrediu a lei penal, que é aquela que todos devem cumprir numa sociedade, mas ela rompe também com a ordem da família. Não é esperado que uma mulher cometa um crime. É esperado que a mulher seja uma mãe dedicada e carinhosa. E essa mulher vai ser olhada e vai ser tratada com muito mais rigor. Então, durante todos esses anos eu tive conhecimento e, claro, que houve uma época em que vivi isso muito de perto, que as mulheres que eram abandonadas pelos companheiros. Quando os companheiros não eram da vida do crime, então, esses companheiros às vezes diziam para os filhos que as mães tinham morrido. Eu vi muitos casos desses.

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E como é a maternidade na prisão?

A questão da maternidade é um tema que também dilacera corações dentro de uma unidade prisional feminina. O contato no dia a dia dessas mulheres com os seus filhos fora da prisão é muito pouco frequente.  Essas tias, madrinhas, comadres e avós que ficam responsáveis por essas crianças passam por apertos financeiros muito substantivos. Às vezes os familiares não conseguem levar os filhos para visitar as mães porque não têm o valor da passagem. Esse abandono da mulher dentro da cadeia, essa separação brutal acaba atingindo também os seus filhos.

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Quanto tempo as presas podem ficar com seus bebês dentro das unidades prisionais?  

Em diferentes estados do Brasil essa questão é tratada de forma diferente. Há várias unidades prisionais que têm creches. Algumas aceitam crianças até seis meses de idade e aí entra toda uma discussão do aleitamento interrompido. Hoje, a discussão é se a mulher deve amamentar enquanto tiver leite. As mulheres de classe média, por exemplo, amamentam até dois anos. Claramente, uma prisão não é um local para uma criança passar um dia da sua vida. Quando a gente discute alternativas à pena de prisão, e isso é uma discussão no mundo inteiro, a “privação da liberdade” deveria ser o último recurso. Agora, nós vivemos num país em que quem tem recursos para contratar um bom advogado vai conseguir ficar com seus filhos fora da cadeia.  Esse é o caso da mulher do Sérgio Cabral, que conseguiu através de uma medida judicial aguardar o julgamento em liberdade. No caso da Adriana Anselmo, ela tem um filho de 12 anos. Você vai a qualquer unidade prisional nesse país hoje e vai ver milhares de mulheres com filhos, com bebês, com filhos que exigem a presença dessa mãe. Esse benefício legal deveria ser estendido a todas as mulheres que hoje são acusadas de algum crime nesse país. A desigualdade social, infelizmente, é terrível no Brasil.

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